Essa mania que as pessoas têm de sempre escolher o superlativo de tudo — o melhor disso, a melhor daquilo — pode causar muitos embaraços; quando não, constrangimentos, ou, o pior, até injustiças cortantes. Ainda há pouco, num programa de tevê, recusei-me a responder quem era a maior cantora da MPB. Aí, a entrevistadora lascou a pergunta pérfida: “Elis Regina, Gal Costa, Ângela ou Dalva?” Minha resposta foi outra pergunta: “E onde fica Elizeth Cardoso?” Na simples indagação, a esperta repórter obteve a resposta, dada quase sem consentimento. Portanto, fanzoquismo à parte e sem querer meter minha colher nesse campo minado de arapucas, ou dualidades, quero daqui saudar Elizeth Cardoso.
E inicio com uma afirmação bombástica – a de que nunca ouvi uma cantora que juntasse, com precisão, três itens básicos (emoção, voz e equilíbrio) para entoar qualquer canção, e que poderia ir de um “É luxo só (feita por Ary Barroso, expressamente para ela) até um “lied” de amor mais sofisticado, como os deslumbrantes “Melodia sentimental” (de Villa-Lobos, versos de Dora Vasconcellos) ou “Estrada branca” (de Tom e Vinícius).
“Uma prima-dona desse porte deveria ser insuportável” — poderia pensar alguém menos informado sobre os segredos da MPB. Não, não era. Elizeth era exigente — mas na medida certa — com ela mesma. Nunca, porém, ultrapassava os limites do bom-senso ou mesmo da boa educação — e até da dignidade — para obter aquilo que quisesse. Lembro-me de que, quando meti na cabeça que tinha de transformar em elepê o belo recital do João Caetano, em que ela atuou para o MIS ao lado do Jacob do Bandolim e do Zimbo Trio, Elizeth não queria que eu produzisse o disco por uma simples razão: ela havia errado duas palavrinhas de uma das letras.
Docemente me telefonou e disse: “Você vai gravar um outro show meu, e pronto. Aí pode editar um elepê meu pelo Museu.” Dois dias depois, visitei-a em casa, só para convencê-la a não privar a posteridade daquele momento magnífico em emoção e garra. Ela observou a paixão com que eu argumentava e pontificou: “Vou deixar sair o disco porque essa insistência toda não é para ir pro bolso de ninguém, só para sustentar o Museu.. mas que eu errei, errei. Edite logo essa bobagem e deixe de chorumelas.”
Essa bobagem, a que Elizeth se referia, acabaria virando um dos elepês duplos mais eloquentes de toda a era do vinil. Meses depois, quando mandei os discos para muitos exilados no exterior, Elizeth recebeu um telefonema de Darcy Ribeiro: da Europa, ele lhe disse, quase em lágrimas, que o Brasil estava enfiado nas suas veias, através daquele som.
Elizeth me contou o episódio indisfarçavelmente feliz, mas acrescentou com olhar maroto: “É que ele não percebeu os meus erros na letra. Cruz-credo!” Assim era a divina Elizeth: nobre como amiga e fidalga como cantora.
Não sei, com toda a sinceridade, se há como apontar substitutas para Elizeth Cardoso nesses tempos vertiginosos.
Cadê aquela voz redonda e cálida, vinda sutilmente de sua mulatice? Cadê a emissão na precisão das notas? Cadê a maciez nos graves e nos agudos? Cadê aquele porte de rainha, tão natural e espontâneo?
Não e não! Não ouso — um século depois de seu nascimento — fazer comparação alguma com qualquer outra cantora de agora. Quem sabe, nos próximos 100 anos? Ainda assim, duvido muito…
Ricardo Cravo Albin é jornalista, historiador, pesquisador musical e criador do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que tem mais de sete mil verbetes e referência na área musical.