Pela primeira vez, não temos aventuras, expedições, viagens. Resta-nos o óbvio da casa, o óbvio da família, o óbvio da vida em comum. E cuidar do simples é o maior milagre da vida. Exige nunca se cansar da repetição. Realizo de novo desfrutando da chance de me aperfeiçoar. É fazer sabendo que está fazendo, com a consciência plena dos movimentos, da motricidade emocional, não para se livrar de um incômodo. Porque a pressa é uma miragem; queremos terminar algo logo para começar outra coisa também sem vontade. Ficamos falsamente livres porque sempre teremos alguma pendência contrariada.
Nos ocupamos, não desfrutamos do tempo. Capricho é estar com a cabeça onde o corpo se encontra. Não arrumo só a cama, preparo um envelope com os travesseiros. Deitamos em uma carta antes dos sonhos. Não só leio um livro, reviso as obras do autor e pesquiso interpretações para decifrar o seu mundo interior. Não só cozinho, mas também tento desafiar a vó no meu sangue para produzir aquele prato inesquecível, para ouvir de minha esposa “o que você colocou de tempero?”, retornando à cabra-cega da mastigação. Não só ajeito a casa, empenho faxina com rodo, vassouras e baldes, já tenho meus panos prediletos e minhas vitórias de limpeza no teto e no avesso das janelas.
Não só converso com os filhos e pais por chamada de vídeo; eu me debruço na varanda dos olhos, quase beijando a câmera. Tento ser melhor para quem está comigo, para que quem está comigo não sofra tanto, não seja assaltado pelo pânico e pela ansiedade. Se sou feliz? Esperançoso. Esperança é trabalhar para a felicidade. Quando a rua me chamar de volta, estarei em casa a todo o vapor. Não sou de esperar sentado.
Fabrício Carpinejar é poeta, cronista, jornalista, sempre triunfando, digamos assim, com sua maneira de ver as coisas. Com inúmeros livros publicados, acaba de lançar mais um: “Colo, por favor! — reflexões em tempos de isolamento”, editora Planeta.