Tenho lembrança de olhos negros e grandes no espelho, quase maiores que meu corpo de criança. Tinha curiosidade de entender aqueles olhos que não pareciam ser meus, e sim de um corpo que estava ali plantado. Tinha medo do que via de fora, mas enfrentava a imagem e tentava uma espécie de apropriação. Gostava de ficar sozinha, trancada num quarto meio escuro, desenhando, eu e a criança. Aos poucos, nos tornamos uma única pessoa – pessoinha difícil, diga-se. Meus pais têm assento garantido na primeira classe para o céu — ou estavam dando espaço para a versão infantil de “Carrie, a Estranha”, ou estavam aplaudindo a exibida performática no meio da rua, mas nunca tentavam me conter.
Foi assim que o amor me libertou. Em seguida, conheceria o homem que saberia me amar do mesmo jeito, sem julgamentos. Sorte, a meu ver, é podermos estar com quem possa nos dar a viagem mais importante da vida: a viagem para dentro de nós mesmos.
Hoje enxergo pouco e uso multifocais escuras para fotofobia. Já não procuro pelos olhos negros no espelho mas continuo fazendo questão dos meus momentos de solidão. Ser quem a gente é, é difícil — exige estudo. Penso em nossa casa como o melhor lugar para isso. Entendo a casa como um laboratório de vida, um lugar sagrado, que deve ser neutro, sem informações imagéticas ou cromáticas. Como um local para criar a partir do imaginário, um ambiente propício para filtrar a multiplicidade de informações recebidas do lado de fora e para decidir o que vai ser mantido e o que vai ser descartado.
Como uma caverna para mastigar ossos. Uma área destinada ao animal selvagem que habita dentro de nós. Nossa casa é nosso lar. É onde fincamos nossas raízes. É onde guardamos nossos tesouros, nossos amores. É onde produzimos terra firme e de onde vemos o rio passar.
E ele passa. Independentemente da nossa vontade, da nossa hora, da complexidade que engendramos nossas existências e situações ou na ilusão de haver qualquer vislumbre de possibilidade em nossa permanência; ainda assim, ele passa. Passa como uma força oposta a esse dilema, se afirmando como premissa evidente. Uma verdade, que como qualquer outra, melhor ser vivida com intimidade. Foi assim que a garotinha estranha de grandes olhos negros decidiu levar a vida: imersa numa realidade, nua e crua, e na certeza de uma força que a tiraria de um lugar comum, pela sinceridade investigativa de sua própria natureza.
Seu autoconhecimento, aceitação e coragem garantiriam o domínio da caminhada. Aqui cheguei hoje, mulher, e me orgulho do lar que criei. Estou longe de ser a mãe ou a mulher “by the book”, mas procuro ser o que mais se aproxima do amor ideal. Na certeza de quem sou e até onde quero chegar, continuo caminhando. Na certeza do limite máximo da liberdade que quero ter e por saber tão bem o caminho de volta, empino minha pipa e deixo voar longe. Brinco sem medo e puxo na hora de parar. Sou amiga do rio e nele eu vou nadar.
Paula Klien é artista plástica. No dia 3 de dezembro, ela inaugura a exposição “Fluvius”, com curadoria de Denise Mattar, no Centro Cultural Correios, no Centro.