“Crônica de uma Cidade Partida”- o nome do novo documentário do diretor carioca Ricardo Nauenberg, uma coprodrução com a Globo Filmes e GloboNews, não poderia estar mais atual, seja com o Rio, com as pessoas, com o Brasil. Através da Cruzada de São Sebastião, no Leblon, ideia de Dom Hélder Câmara, em 1955, como parte do projeto de desfavelização da cidade, Ricardo conta uma história cheia de dicotomias, em que o conjunto habitacional de 10 prédios e 945 apartamentos mostra a segregação da sociedade, misturando o tráfico de drogas com trabalhadores honestos obrigados a se sujeitarem a leis locais, já que o estado perdeu espaço por ali. “A Cruzada é um microcosmo do que aconteceu na cidade”, diz ele, que entrou e saiu de lá por um ano e meio e entrevistou centenas de pessoas, nove selecionadas para o filme, entre traficantes, policial de elite, ativistas comunitárias e professores esportivos.
Antes de ser lançado no Brasil, em 2019, Nauenberg o inscreveu em festivais internacionais, como Sundance e Berlim, para dar mais visibilidade a um assunto pertinente e urgente, assim como aconteceu com “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles, que chamou atenção do mundo antes de ser valorizado em seu próprio país.
Como surgiu a ideia do doc?
Eu tinha muito interesse pela Cruzada sempre que passava por ali, como morador do Leblon, por ser um lugar que acaba sendo uma cidade dentro da cidade. Mas a vontade aumentou depois que conheci um personagem e, frequentando, percebi outras nuances; então deixou de ser a Cruzada para ser a ‘Crônica de uma Cidade Partida’, porque ali acontecem todos os processos que estamos vivendo no Rio: a questão da segurança, da negligência da política de habitação popular, onde existem os desmandos do governo, da favelização da cidade. Tem o crime, e a cidade acaba se partindo em regiões onde o poder público não entra. Estamos voltando ao poder feudal, em que cada morro tem os seus castelos e seus presidentes, que são os traficantes com seu exército próprio – 60% da droga que se consome na boca do morro vêm da própria comunidade. Então, eles têm economia própria; não precisam de nada, e isso é muito preocupante porque as pessoas não se dão conta ou nada fazem.
O que você percebeu durante as filmagens?
Percebi que a culpa é de todos. Essa visão de que os caras são coitados é estereotipada. Durante 15 anos, aquilo funcionou muito bem, quando era da igreja (a Santos Anjos), mas, quando deixou de ser, numa medida também de populismo, eles desapropriaram da igreja e deram as propriedades para as pessoas. O primeiro desmoronar veio com a cobrança de condomínio, que ninguém pagava, e assim o conjunto começou a cair aos pedaços. Mas o que a gente vê ali dentro tem aqui fora também – muitas práticas ilegais, só que lá é exagerado porque não tem supervisão do estado, que não se interessa por aquilo. Nos prédios de classe alta de Ipanema, tem muita gente transgredindo, uma sociedade avessa ao espírito de comunidade, uma sociedade que não respeita as leis. Mas isso é fácil de resolver.
Como?
Simplesmente fazendo com que as leis sejam cumpridas. O que nós não podemos fazer aqui fora, eles não podem fazer lá dentro, mas, por outro lado, o estado não entra lá. Tem que determinar as regras básicas de que todos somos iguais, temos o mesmo direito, somos tratados da mesma maneira nas obrigações e vantagens. Como o estado não entra lá para determinar as normas, os caras fazem as deles, assim como nas favelas.
A Cruzada então virou uma coisa maior?
Não queria fazer uma coisa superficial, rala, então fui convivendo com as pessoas, e só entrei de fato depois de seis meses apurando, conhecendo… O grande tema é a cidade, não a Cruzada; somos todos nós e porque não demos certo até hoje. Meu pai é um imigrante alemão que chegou aqui e me disse que eu ficasse, que este era o país do futuro – mas a gente está afundando. Então, esse doc é um mea culpa, mostrando que todos nós, de todas as classes sociais, temos mau comportamento, uma má educação, má conduta. Se fôssemos mais bem educados, o País teria mais esperança.
É um fenômeno carioca?
Tem uma parte em que falo isso. Esses fenômenos acontecem na América Latina, no México, Venezuela, Colômbia, Peru – é uma coisa latino-americana, que passa por uma questão de corrupção dos órgãos públicos, da falta de sentimento de nação. Ninguém toma a frente para decisões coletivas, só para proveito pessoal.
Você entrevistou traficantes etc. Em algum momento teve medo?
Isso eu não posso falar muito, mas não sei até que ponto eles têm consciência do que eu fiz. Talvez eu tenha que passar um tempinho fora do Rio, depois do lançamento. Sofri algumas ameaças, mas sou um cara decidido, porém responsável. O filme não tem um nome, não mostra um cara de frente; mas o importante é discutir a questão, dizer o que acontece. Deixei 70% das filmagens de fora para não rotular e nem atrapalhar a vida de ninguém. Por exemplo, um dos filhos de um cara é traficante; o outro, juiz. Se você publica um, o outro pode ser prejudicado.
Algum fato curioso de bastidor?
Tem um chefe geral do tráfico que está preso há 9 anos, e eu fui a Bangu 3 fazer as entrevistas para entender os processos. Também fiz muita ação social lá dentro: montei uma escola de fotografia, mas não foi pra frente porque ficava vazio, o pessoal do Vidigal é que frequentava.
Qual a conclusão e mensagem do filme?
É um retrato das coisas que a gente vive e a constatação de que temos uma sociedade egoísta, alheia e cega. É mais uma visão pé no chão; não existe pobre coitado, todos somos culpados e eles, também. Temos que entender quais os pressupostos básicos se quisermos viver numa sociedade igualitária e nos comportarmos de acordo, desde o playboizinho de Ipanema ao garoto da Cruzada. Fora isso, não temos que olhar a pinta, mas o todo.
Não seria um filme para ser lançado pré-eleições?
Ele não é político porque o assunto é maior do que isso. Trato de uma enfermidade da nossa cultura de 200 anos pra cá; eleição é uma coisa pontual. É um filme humanista. Discuto comportamento, estou discutindo o óbvio porque não tem como negar que a limpeza é melhor do que a sujeira, de que a mentira é melhor que a verdade, que a bondade é pior do que a maldade – são pressupostos básicos. E tem certas coisas que fazemos que está muito errado, e ninguém consegue dizer em sã consciência. Os partidos lançam os candidatos que têm maior chance de ser eleitos; não os escolhem para resolver os problemas do País. Então, está tudo errado. Romário, por exemplo, foi um ótimo jogador, mas o que ele entende de administração? Você não pega o Nelson Mandela pra jogar uma final de campeonato mundial de futebol pela África do Sul. No Brasil eles pegam o Ronaldinho (Gaúcho) para se candidatar porque ele vai ganhar o poder.
E a sua cidade partida?
Está tudo errado e, na verdade, é triste; não vejo solução, porque as pessoas não têm atitude. Elas vão até a metade do caminho e desistem. Tem muita gente que faz muita coisa isoladamente, mas levar isso para uma estratégia pública é muito difícil. Existem lugares que dão abrigos a mendigos, mas aquilo é temporário. O filme mostra como as coisas funcionam tortas. A gente não percebe a gravidade. Se você pegar um sapo e jogar na panela fervendo ele pula fora, mas, se jogá-lo na água morna e esquentar devagarinho, ele morre assado. O sapo somos nós.
Foto de Bruno Ryfer