Não é fácil escrever a abertura de uma entrevista com Fernanda Montenegro. Atriz que aos 88 anos recém-completados (em 16 de outubro) – 70 de carreira -, ao ouvir de um jornalista que é um exemplo de mulher, mãe, profissional, ativista e sempre à frente do seu tempo, diz “Não sou, não”, sorrindo. Já podemos concluir que Fernandona não conhece a si mesma, ou seria aquele sorriso de quem sabe que sim, mas faz de conta que não? Talvez por ter consciência de que a sabedoria é uma maneira de ver as coisas (quem disse isso? Proust?).
Assediada ao limite na festa de lançamento de “O Outro Lado do Paraíso”, novela de Walcyr Carrasco, onde interpreta Mercedes (uma mulher mística, rezadeira, que escuta vozes e está sempre disposta a ajudar), Montenegro deu atenção a todo mundo, com carinho e disposição. Algumas respostas à essas perguntas, feitas pelo site e outros veículos credenciados, eram quase de supetão, sem precisar pensar. A atriz praticamente “quebrou a Internet” em suas primeiras aparições, e suas cenas foram os assuntos mais comentados nas redes sociais.
Leia sua entrevista:
A senhora acredita em premonições?
Tem muitas maneiras de você usar seu misticismo; até mesmo que você não creia em nada, tem sempre algo em que você se envolve. No caso da minha personagem, Mercedes é singela, simples, e sua emoção é bem descompromissada com qualquer sofisticação teológica. É a fé do povão. Eu me considero mística, embora tenha dúvidas, mas deixa eu pensar bem… Há um santo que diz que “se você duvida, é porque você já crê” (Santo Agostinho). Ou se você perde tempo se dizendo ateu e explicando o motivo, ele já dá importância à crença. A coisa da crença é muito forte, e o ser humano sempre acredita em alguma coisa.
E na lei do retorno (um dos temas da novela)?
Se você não aceitar a ideia de ir em paz para o próximo plano, você não vai conseguir nada. Sempre fiz tudo seguindo meu coração. Na medida que eu possa me olhar, só segui meu coração, mas ainda não consegui enxergar na outra dimensão.
Com tantos anos de carreira, a senhora ainda enfrenta desafios?
Não existe essa carreira sem desafio. Não há paz de espírito, essa é a lei do paraíso. Nossa carreira é muito intensa, tanto que a gente vicia no estresse. Todo dia, o ator tem que mostrar sua criação, sua criatividade. Aqui, nesta terra, não há descanso – todo dia você acorda e agradece a Deus que acordou. Passa o dia, e você agradece por ter chegado ao fim. Vai dormir e pensa no que pode fazer para melhorar o amanhã, se é que vamos ter algo para fazer porque, neste país, às vezes, não há muito que fazer no amanhã.
Falando nisso, o que acha do momento atual na cultura do nosso país?
Estamos num momento muito complicado. O voto foi de paz e, de repente, temos uma cambada no Congresso absolutamente rasteira àquele voto de um país a caminho do melhor. Um país que não tem cultura, não é um país. A gente precisa de uma cultura criadora, respeitosa. É difícil uma educação seca, esquelética. É a cultura que dá carnificação da educação. Estamos caminhando para uma coisa pior do que no tempo dos militares. O Brasil está sendo colonizado por esse “país” chamado Brasília.
E a rotina mudou com o tempo?
Total. Acho que está havendo a necessidade de uma estética cinematográfica. Então está se colocando de lado o processo televisivo de fazer histórias com as câmeras de TV, e isso exige uma luta difícil porque, hoje em dia, um capítulo de uma novela é como a produção de um filme por dia. Temos que ver até que ponto se aguentará isso. Até o momento, não fico cansada; não sei no futuro. É a primeira vez que eu estou enfrentando uma estética cinematográfica como essa. Costumo fazer cinema, tudo bem, mas com essa produtividade diária de um longa na TV, nunca. Precisamos ver o que é isso.
Acompanha as redes sociais?
Mal tenho celular e uso só para fazer ligações. Tenho uma página no Facebook que a minha secretária alimenta. Quando falam bem, ela me diz maravilhas, mas quando falam, me destroem, ela não fala nada; mas também, se falarem mal e eu souber, tudo bem. Geralmente, as pessoas me avisam quem me xinga e quem me ama. É uma balança. Hoje em dia, a ciência e tecnologia colocaram a opinião pública sem reservas.
A gente conhece a Fernanda, mas quem é Arlette? (o nome verdadeiro da atriz é Arlette Pinheiro Esteves Torres).
Eu sou esquizofrênica assumida. Quando a Arlette fala é através da entidade Fernanda Montenegro, que se criou e nunca soube que daria certo. A dona Arlette é uma senhora doméstica que se esconde muito; já a Fernanda é essa senhora do mundo, que vive nos palcos deste país. É uma dicotomia doentia – eu só não estou no hospício porque publicamente me aceitam assim e, às vezes, até aplaudem. Poucas pessoas me chamam de Arlette – a maioria já morreu.