Camilla Amado sabe muito da vida de William Shakespeare, também pela convivência com a amiga Barbara Heliodora, morta recentemente. É capaz de falar de cor alguns textos do autor – e com muita emoção. Depois de dois trabalhos com obras do poeta e dramaturgo inglês – um como atriz e outro, como diretora –, Camilla acaba de voltar aos palcos com a comédia “Como a Gente Gosta”, dirigida por Vinicius Coimbra, no Teatro dos Quatro, no Shopping da Gávea. A atriz se reencontra no palco com Pedro Paulo Rangel, 42 anos depois de atuarem em “As Desgraças de uma Criança”. No elenco estão também Priscila Steinmann, Gabriel Falcão, Patrícia Pinho, Alexandre Contini, João Lucas Romero, Xando Graça e Jitman Vibranovski.
Mulher culta, inteligente, generosa, vigorosa, e isso e aquilo e tanta coisa, Camilla é considerada uma mestra de grandes nomes da TV brasileira. Todos os picas-da-galáxia (nacionais), digamos assim, são seus alunos.
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De onde você tira tanta alegria e sabedoria de viver? Isso foi algo conquistado aos poucos?
“O grande legado da Tragédia Grega foi mostrar à humanidade que, por trás de qualquer circunstância, por mais terrível que seja, a essência da vida, a vida no fundo das coisas, é indestrutivelmente poderosa e alegre. Convivo com a ajuda natural da Luz que Einstein provou, matematicamente, que somos. Cada um de nós pode dizer, com certeza, como Paulo Coelho: “Eu sou a Luz das estrelas!”- porque é verdade. Como não ser alegre? Einstein pôde, com leiga autoridade, dizer a seguinte frase: “Deus tem que me agradecer porque provei matematicamente que Ele existe.”
Seu trabalho como preparadora de elenco é respeitadíssimo. Já houve algum caso de ator, sem citar nomes, que você não tivesse dado jeito, ou de quem você quase desistiu? O que é preciso trabalhar basicamente num ator? A autoestima?
“Se aceito trabalhar com um ator que me pede ajuda, não desisto nunca. A autoestima depende do profundo autoconhecimento, que exige aceitarmos nossas qualidades e nossas humanas imperfeições. O ator-artista acaba conseguindo aceitar a dor da humanidade e ser intérprete dessa dor. A dor de não ser o Todo Ser, apenas parte. A dor da Falta. Lacan me ensinou: “Esta Falta não é preenchível por nada.” Mário de Andrade desabafou: “Amo esta humanidade que criei. Amo com raiva.”
O ator ama, assim, as personagens que cria, que revelam e expõem suas imperfeições. É preciso ter coragem para ser ator. Converso muito com os atores com quem vou trabalhar e, quando aceito trabalhar com um aluno, não desisto nunca. A autoestima depende do autoconhecimento. O que eu preciso trabalhar basicamente com um ator é o autoconhecimento, que exige de nós, atores, aceitarmos nossas reais qualidades e nossas inegáveis imperfeições. Não somos o Todo – somos partes do Todo.
Sendo parte, sentimos falta do Todo, e é essa a nossa humana dor. Nosso sujeito é constituído de desejo e falta; e esta é impreenchível. O artista cria ilusões para preencher a falta, mas o artista sabe que é lúdico, que está brincando de preencher a falta, como a criança com a fantasia. A dor do nascimento,”a ferida narcísica”, assim chama Freud a dor do nascimento. Incurável.
Conhecer-se é entrar em contato com essa dor: a dor de não ser perfeito nem onipotente. E ser só. Spinosa definiu a alma como “coisa singular”.
A solidão é fatal. O ator-artista conhece e aceita a solidão, a imperfeição, e faz dela material de trabalho. Revela e expõe ao público a fragilidade humana, a cruel ferocidade, e repousa no conforto da beleza de ter se escolhido, em meio ao conhecimento de sua contraditória integridade. O que o ator busca e deseja é a coragem de ser livre, ser fiel a si mesmo. Sartre me ensinou que só somos livres quando suportamos a angústia da responsabilidade da escolha.
Coragem vem do latim “cuoragire”= agir com o coração. Artistas são corajosos. Agem com o coração”.
As relações humanas são a base da atividade teatral. Você, que já foi casada por 14 anos, acredita numa relação estável?
“Não acredito e não desejo a estabilidade. A vida é alto-mar: instável, com ondas incoerentes e simultaneamente harmoniosas. Neste momento, gostaria de ganhar da vida amor e ‘Ordem e Progresso’ para o Brasil”.