A cada avanço da Medicina, aparece alguém pra dizer que o homem está “brincando de Deus”.
Foi assim com o transplante de coração, com o bebê de proveta, com o uso de células tronco — e, suponho, deve ter sido também na primeira vez que a mamãe neandertal colou um bandeide (de tripa de velociraptor) na testa de um trogloditinha ferido.
Mas nada é mais parecido com brincar de Deus que a jardinagem.
Quanto mais oprimida e frustrada é uma criatura, mais alento ela encontrará em torturar plantinhas cortando seus galhos, arrancando suas folhas, mudando-as de lugar ao seu bel-prazer.
Diante do canteiro, pazinha em punho, a mais inocente das velhinhas se transforma numa potestade, com poderes de vida e morte sobre a flora que tem diante de si.
E com que prazer as até então inofensivas esposas de rotarianos se dedicam a decidir que plantas serão salvas — e regadas e adubadas e cuidadas — e quais serão arrancadas sem dó nem piedade, e deixadas para morrer à míngua.
Não há mágoa de humilhações no lar ou bullying no trabalho que sobrevivam a meia hora de jardinagem.
Pode-se optar por extravasar a agressividade através da terapia do grito primal, das artes marciais ou do adultério. Mas isso frequentemente incomoda os vizinhos ou deixa hematoma – ou as duas coisas juntas.
A jardinagem, não: o dano máximo é um pouco de terra sob as unhas e algum dedo espetado. E — ao contrário do grito primal, da arte marcial e do adultério — pode ser praticada na varanda ou no jardim de casa, a qualquer hora, na frente de todo mundo.
O efeito terapêutico da jardinagem está na encenação do Juízo Final diante de cada plantinha.
Você olha para a planta (totalmente à sua mercê, sem a menor chance de fuga), pesa os prós e os contras, põe na balança seu aspecto, sua utilidade, seu tamanho, e a deixa viver ou a condena à morte, sem apelação em segunda instância.
Simples assim.
Jardinagem é Deus em estado puro — e sem nossassenhoras, santos ou anjos para fazer lobby por essa gramínea ou chantagem emocional em prol daquela avenca.
A grande questão que se impõe, nesse momento sublime é saber distinguir, num átimo, quem é planta, quem é mato.
Aparentemente, bastaria fazer como no dia-a-dia e julgar pelas aparências: as bonitas são plantas, as feias são mato. Mas não é bem assim: num tocante paralelo com a espécie humana, há plantas muito feias, e matos lindos.
A técnica — sofisticadíssima — pra saber quem é um, quem é outro, é puxar.
Se sair, é planta.
Se se agarrar com todas as forças ao chão, é mato.
(Mais uma vez, a jardinagem como metáfora da vida. Quem a gente quer do nosso lado está sempre saindo pela tangente, nunca está disponível hoje à noite, não atende o telefone, mal curte nossas postagens. Já as ervas daninhas… essas não largam do nosso pé).
Finda a capina, tal como Deus ao sétimo dia, o adepto da jardinagem se espreguiça, feliz. As juntas doem um pouco (ter dor nas juntas parece ser pré-requisito para se praticar jardinagem), mas você se levanta, limpa as mãos na calça (ou na saia) e contempla sua obra: os maus separados dos bons, o Mal (o mato) enfim punido (arrancado pela raiz!) e o Bem todo faceiro, agora com mais espaço e menos competição pelos nutrientes do solo.
Se Deus soubesse que era tão simples, não precisava ter tido essa trabalheira toda de criar o mundo, as aves do céu e os peixes do mar, e galáxias rodopiando pelo firmamento, com quasares, pulsares, buracos negros e um ou meteoro exterminador de dinossauros.
Para brincar de si mesmo, bastava um vaso de plantas — com a vantagem adicional de que haveria pás na terra.