Não tenho medo de avião.
Acho avião uma criatura muito simpática — me parece um golfinho metálico, de óculos escuros, com enormes nadadeiras e uma barbatana retardatária, lá na cauda.
Tampouco tenho medo de voar.
Meu medo é justamente que, em algum momento entre a decolagem e o pouso, ele não voe.
Toda véspera de voo, vem esse sobressalto: e se…
Sim, já trabalhei isso na análise. Era culpa. A queda seria a punição por eu estar me divertindo (mesmo que a viagem seja a trabalho), gastando dinheiro à toa (mesmo que a passagem seja paga pelo patrão, pelo cliente ou cortesia da companhia aérea).
Meu id e meu ego entenderam perfeitamente e se puseram de acordo. O problema sempre foi o superego, que invariavelmente pedia para ir ao banheiro quando esse assunto vinha à tona — e se escafedia no meio da sessão.
Tirando uma vez, num voo da Pluna para Madri, em que meu assento não existia (e uma comissária teve que ir em pé para que eu pudesse me sentar) e um aguaceiro (certamente condensação do ar condicionado) desabou sobre minha cabeça, e me fez cruzar o Atlântico mais encharcado do que se tivesse ido a nado;
E a vez em que, num voo da Aeroflot, havia ossos de galinha no chão — e fios soltos por toda a aeronave — e o pouso foi meio de banda (com a suavidade de uma jaca madura), e os compartimentos superiores se abriram e as bagagens de mão criaram asas (o que me fez pensar que a companhia deveria mudar o nome para Aeroploft);
E aquela vez em que, vindo de Goiânia, a turbulência foi tão intensa que, se eu estivesse embarcado com um litro de leite, teria aterrissado com um pote de manteiga;
E a ocasião em que, chegando a Halifax, o trem de pouso não baixou e o piloto mandou todo mundo ficar em posição de impacto, porque ia pousar de barriga. Foi nesse dia que descobri ser mentira aquela história de que não há ateus a bordo de aviões em pane: minha única dúvida foi se fechava os olhos e relaxava ou se os mantinha bem abertos para não perder nenhum detalhe do último capítulo. Para não deixar a fofoca pela metade: arregalei os olhos, o trem funcionou, houve mais alívio que pânico no desembarque, quase todos os passageiros preferiram seguir viagem de ônibus; só eu e mais uns dois — possivelmente também ateus — esperaram o próximo voo (em outro avião, porque abuso tem limite).
Tirando isso — e alguns outros perrengues de menor porte — nunca tive motivos para ter medo de fazer check-in, afivelar os cintos etc. Mas não deixo de ter vontade de fazer algum comentário que, caso ocorra o pior, possa ser interpretado como “Nossa, era um pressentimento!”.
Qualquer coisa serve. De uma citação da Clarice Lispector (“Viver é uma missão suicida”) até mais uma reclamação da vizinha que resolve mudar os móveis de lugar às 23h45 (“Parece que era um chamado do andar de cima!”), tudo poderá ser entendido como premonição. Ainda mais que acabo de ver que vou para São Paulo num teco-teco de apenas 9 passageiros, daqueles de devem bater asa para conseguir sair do chão. Praticamente uma van alada.
Se na hora em que você estiver lendo este texto (possivelmente no domingo, 28 de janeiro) eu já tiver desembarcado em Congonhas, são e salvo, terá sido um texto como qualquer outro. Caso contrário, não faltará quem diga “Gente, parece que ele sabia!”.
Não, não sabia. A gente quase que nada sabe — mas desconfia de muita coisa, como escreveu Guimarães Rosa.
Por via das dúvidas, sigo o ritual de toda véspera de embarque: verifico se está tudo na mochila (nunca está), rego as plantas, fecho os registros e apago todo o histórico do celular e do lepitope.
Vai que…