Tico, o neurônio solitário, se espreguiçou, olhou o despertador na mesinha de cabeceira (Tico não pode usar a expressão “criado mudo” desde que seu dono descobriu que ela é especista, capacitista, uma coisa assim) e viu que ainda faltavam dez minutos para o militante — seu dono — acordar.
Era sempre bom se antecipar. Várias vezes havia acontecido de o militante abrir os olhos, pegar o celular e sair disparando xingamentos para tudo quanto é lado, na internet, enquanto Tico ainda estava se desvencilhando dos aconchegantes braços de Morfeu.
Não, nunca mais — prometera para si mesmo. Levantou-se dendrito ante dendrito (neurônio, como se sabe, não tem pé), preparou um café extraforte, coçou a bainha de mielina (neurônio, como se sabe, não tem… vocês sabem o quê) e foi ler os jornais do dia.
O militante não lia jornais — só via os reels que o algoritmo mandava para ele. E o algoritmo só mandava para ele os reels que diziam exatamente o que ele pensava. Donde, deduzia o militante, ele estava certíssimo, porque todo mundo (todo mundo = todos os reels que recebia) não poderia estar errado.
Tico tinha que se informar para tentar neutralizar a desinformação. Era o mínimo que podia fazer por aquele que lhe dava abrigo naquela caixa craniana enorme — e vazia.
Houvera ali, um dia, um cérebro. Tico se lembrava, com lágrimas no axônio, do finado Teco, o último companheiro com quem trocara sinapses. Depois da partida de Teco, o vácuo, o silêncio, a solidão.
Mas Tico não reclamava: quando era apenas um entre 86 bilhões de neurônios, mal conseguia dormir com aquele escarcéu de pensamentos, argumentos, teses, antíteses, análises, entendimentos, paradoxos, contradições. Os dados eram processados, tabulados, classificados 24 horas por dia, sete dias por semana – com ponto facultativo apenas quando os hormônios cismavam de dar as caras.
Naqueles tempos, o militante ainda não militava: pensava. Ponderava. Conjecturava. Tinha lá seu viés, relevava de um lado o que não perdoava do outro, mas isso fazia dele um ser humano – aquilo que já não é húmus e ainda não virou pó.
Mas aí deu-se a melódia: aquele em cujo cérebro Tico morava decidiu que era mais prático que pensassem por ele. Repetir bordões dava menos trabalho que formular conceitos. E aí alguns neurônios foram ficando sedentários, com problemas nas articulações e entupimento do pericárdio, e bateram as botas — ops, os botões sinápticos.
Houve desemprego em massa no lobo frontal, com a desativação das funções cognitivas. Desgosto profundo e depressão no lobo temporal, já que a memória passou a ser muitíssimo seletiva. O lobo occipital acabou esvaziado, já que o militante agora só via o que queria. A ínsula, coitada, que antes fazia hora extra para dar conta do comportamento social, perdeu a razão de existir.
Tico foi quicando de um lobo a outro, à medida que as funções cerebrais desapareciam, e assim sobreviveu à extinção (quase) completa dos neurônios. Agora cuidava sozinho de tudo — um tudo que era quase nada: criar condições mínimas para que o militante pudesse repetir palavras de ordem, reciclar falácias, digitar impropérios no Xuíter e tentar aparentar ser bem mais preocupado com a Humanidade do que realmente era.
Na quitinete que ocupava — agora se chamava estúdio, mas era a mesma quitinete minúscula de sempre — Tico lavou a xícara e a colherinha, dobrou o jornal e se colocou a postos para mais uma jornada (o militante adorava a palavra “jornada”). Pelo painel de controle, viu que o militante abria os olhos. A ideia era que o fizesse escovar os dentes, pentear aquele chumaço de cabelo, arrumar a cama, preparar um açaí com granola e… tarde demais. O militante já tinha agarrado o celular. A sessão de agressões virtuais estava por começar.
Tico ajeitou a foto de Teco sobre a mesinha, aqueceu os dendritos e deu início a mais um dia de ódio do bem. Teco, onde quer que estivesse, estaria bem melhor do que ele.