O Ministério da Saúde houve por bem banir do seu vocabulário uma palavra não-inclusiva, transfóbica e que perpetua preconceitos: “mulher”.
Está lá, no material sobre cuidados puerperais:
“Também conhecido como pós-parto, puerpério é o período que ocorre após o parto. Nesta fase, o corpo de quem pariu está em processo de recuperação passando por uma série de modificações físicas, emocionais e psicológicas.”
Pode ser minha sensibilidade interiorana, mas a expressão “o corpo de quem pariu” me soa a xingamento.
Porém, se utilizasse “o corpo da mulher” ou “o corpo da mãe”, o Ministério da Saúde se sentiria excluindo as pessoas que parem e não se identificam como pertencentes ao sexo / gênero feminino.
Numa recente campanha de distribuição de absorventes, o termo “mulher” também foi evitado. O programa de dignidade menstrual ficou sendo voltado para “metade da população”.
Qual metade? Aquela que tem um corpo que menstrua, ora — e a que os sumérios, fenícios, visigodos e neandertais se referiam como meninas, moças, mulheres.
Mas é isso mesmo: o mundo evolui e temos que acompanhar as mudanças, em vez de nos tornar aquela pessoa (que menstrua ou que faz xixi em pé) rabugenta que vive reclamando que “no meu tempo não era assim”, “no meu tempo não era assado”. “Seu tempo passou”, é o que nos diz o Ministério da Saúde. Adapte-se ou terá o mesmo fim do rinoceronte negro, do pássaro dodô e do técnico de fax.
É hora de deixar para trás os valores d’antanho e acertar o passo com esses loucos anos 20 do século XXI.
Podíamos começar atualizando as canções, para não deixar dúvida quanto ao tipo de pessoa a quem o compositor, provavelmente, se referia:
“Agora chegou a vez, vou cantar / Pessoa brasileira portadora de ovários, trompas e tubas em primeiro lugar.” (Benito de Paula)
“A minha teimosia é uma arma / Pra te conquistar / Eu vou vencer pelo cansaço / Até você gostar de mim / Pessoa com monte de Vênus, grandes lábios, pequenos lábios e clitóris.” (Jorge Benjor)
“Se acaso me quiseres / Sou dessas pessoas que secretam mais progesterona e estrogênios que testosterona / Que só dizem sim.” (Chico Buarque)
Mas o que fazer com “Essa menina, essa mulher, essa senhora”, que Joyce escreveu para Elis Regina? Ou com “Dona / Desses traiçoeiros / Sonhos / Sempre verdadeiros / Oh, dona / Desses animais / Dona / Dos seus ideais // Tan tan tan, batem na porta / Não precisa ver quem é / Pra sentir a impaciência / Do teu pulso de mulher”, de Sá e Guarabyra?
E — o que é pior! — como nos livrar da preconceituosa palavra “mãe”?
“Corpo que pariu / Corpo que pariu / Corpo que pariu / Eu te lembro chinelo na mão / O avental todo sujo de ovo / Se eu pudesse, eu queria outra vez / Corpo que pariu / Começar tudo, tudo de novo”. Não, Herivelto Martins e David Nasser não merecem.
Porém nem tudo está perdido. Com algum talento e muita paciência (ou vice-versa), dá para resolver e não melindrar o Ministério da Saúde.
Caetano Veloso, com certeza, tiraria de letra a atualização inclusiva do clássico “Esse cara”:
“Ele é quem quis / Ele é um ser portador de cromossomos XY / Eu sou apenas / Um ser portador de cromossomos XX”.
(Para Simone de Beauvoir, Betty Friedan, Rose Marie Muraro e todas as que lutaram contra o apagamento das mulheres – ops, das pessoas que menstruam, das pessoas que parem.)