Nestes tempos em que as redes sociais se tornam ringues de polarização, Uriã Fancelli, 30 anos, aproveitou a onda máxima das discussões e acaba de lançar seu primeiro livro, “Populismo e Negacionismo”, com prefácio do jurista Rubens Ricupero (ex-ministro do Meio Ambiente e Fazenda), que está em 4ª lugar dos mais vendidos na seção de política da Amazon. Uriã, em linguagem fácil e direta, trata de temas como fake news e rejeição de fatos científicos, explorando as causas e consequências de teorias conspiratórias sobre temas, como os incêndios da Amazônia e a vacina da covid.
O autor é do interior do Paraná (Paranavaí), mas mora em São Paulo desde 2013, e é casado há oito anos com o empresário Anderson Baumgartner. Mestre em Estudos Europeus, chegou a integrar a missão diplomática da União Europeia em ações feitas no Brasil. Uriã tem feito sucesso com vídeos nas redes sociais, falando sobre assuntos que, para muitos, é uma chatice, mas ele consegue trazer para um lugar mais leve possível.
Você sempre pensou em seguir a carreira em Relações Internacionais? Geralmente, gente da sua idade tem outros interesses.
Desde os 12 anos, eu era obcecado por países e idiomas. Hoje, falo português, francês, inglês, espanhol, holandês, africânder (uma das línguas oficiais da África do Sul) e um pouco de alemão. Foi depois de passar um ano na África do Sul, que escolhi cursar Relações Internacionais. Hoje, concluí um mestrado-duplo em Estudos Europeus realizados entre a França e Holanda.
Qual a maior diferença entre os ânimos políticos do Brasil e outros países?
Além daqui, vivi na Argentina, África do Sul, França e Países Baixos. O que notei em comum, em todos eles, é o desejo das pessoas de viver em um país que seja cada vez melhor. Muita gente tem a impressão de que o que vivemos hoje, no Brasil, é algo único, excepcional. Não é! Há, de modo geral, no mundo democrático, uma crescente insatisfação com o sistema político vigente, e isso abre caminho para o surgimento de figuras prometendo que isso não vai acontecer. São os populistas que fomentam a polarização. No Brasil, não somos mais céticos ou incrédulos do que em outros lugares, mas apenas um país onde essas estratégias de polarização têm dado certo. As pessoas tendem a ter uma visão negativa em relação ao futuro. Contudo, devemos nos lembrar de que, se compararmos o mundo atual com o de 100 anos atrás, estamos muito melhores. Essa imagem de pessimismo em relação ao futuro é algo muito explorado por políticos brasileiros mal-intencionados, que usam o medo para ganhar apoio. Isso se chama manipulação.
Essa percepção o levou a escrever o livro?
Eu já venho estudando movimentos populistas desde 2016. Em 2019, enquanto eu trabalhava na Delegação da União Europeia, em Brasília, tinha como uma de minhas funções monitorar os acontecimentos políticos e reportá-los para Bruxelas. Foi justamente nesse momento que notei o Presidente Bolsonaro negando que os incêndios da Amazônia estavam aumentando por causa do desmatamento. Então pensei: ‘Acho que esse senhor está negando a realidade’. Logo depois, quando veio a pandemia, percebi que o mesmo estava acontecendo, porém, desta vez, em relação à covid. Decidi então escrever uma tese de Mestrado relacionando o Populismo ao Negacionismo, algo que, por incrível que pareça, nunca havia sido feito antes. Essa tese deu origem ao livro.
Qual o risco do populismo e como combatê-lo?
Precisamos entender três conceitos: povo, elite e vontade geral do povo. Os populistas são antielitistas, só que esse conceito de ‘elite’ nada tem a ver com o conceito de ‘elite versus proletariado’, do Marxismo. Aqui estamos falando do ‘moral contra o imoral’. ‘Elite’, na minha concepção, é quem detém o poder, e ela é frequentemente o alvo dos populistas, que exploram as aflições do povo e afirmam que vão tirar o poder da elite, devolvê-la para o povo. Se pararmos pra pensar, nossa sociedade é plural, então não existe uma única ‘vontade geral do povo’. É por isso que os populistas são antipluralistas e contra a diversidade na sociedade, e para eles, só faz parte do ‘povo’ quem pensa como eles. Os principais riscos são promover a intolerância na sociedade e a ameaça às instituições democráticas.
E do negacionismo?
Tive que estudar sobre Psicologia. Eu ficava chocado! Negacionismo não é apenas negar a realidade, mas, como vemos atualmente, significa selecionar certos fatos e ignorar outros igualmente relevantes, mas que possam ameaçar nossa própria ideologia ou visão de mundo.
Como funciona a cabeça de uma pessoa sem tendências negacionistas?
Ela tem determinada opinião sobre um assunto; aí, de repente, surge um novo fato que ameaça essa visão de mundo. O que acontece? É criada uma tensão psicológica que obriga essa pessoa a mudar de ideia! Não ser negacionista significa ter a habilidade de mudar de ideia diante de novos fatos.
O principal motivo que me levou a escrever esse livro foi ter observado que populistas, como Trump e Bolsonaro, passaram a utilizar o negacionismo como ferramenta para domínio político. Se de maneira separada, tanto o populismo quanto o negacionismo já geravam consequências sérias, com o negacionismo nas mãos de populistas, os resultados são desastrosos. Trump negava as mudanças climáticas e tirou os EUA, o segundo país que mais polui a atmosfera no mundo, do Acordo de Paris, o mais importante para atenuar o aquecimento global. Ao mesmo tempo, Bolsonaro negava os incêndios da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo, que tem a capacidade de regular todo o ciclo hidrológico do Planeta.
Qual o resultado disso?
Foram necessários apenas dois populistas negacionistas em dois países-chave para que a luta contra as mudanças climáticas fosse ameaçada em todo o Planeta. Afirmar que o populismo, somado ao negacionismo, possui o poder de destruir o Planeta, não é um exagero. A negação sobre a seriedade da pandemia por Trump, e depois Bolsonaro, deixou milhares de mortos. Tanto Trump quanto Bolsonaro, quanto outros populistas europeus já demonstraram tendências em contestar resultados eleitorais. Isso é uma tentativa de estabelecer precedentes para contestar as próximas eleições, caso venha a perder.
Com a Internet, as pessoas viraram críticas bélicas e especialistas em relações internacionais. Com isso, fake news, agressões e partidarismo viraram hábito…
O ser humano é munido de vieses cognitivos, que nos impedem de enxergar o mundo como ele é. Um deles é o viés confirmatório, a tendência em confirmar aquilo que já se acredita. A Internet serve como anabolizante pra isso. As pessoas possuem o hábito de seguir aquelas páginas com as quais compartilham das mesmas visões de mundo. Se, no meu Facebook, eu só vejo publicações de extrema-direita, falando que a cloroquina funciona, ou de páginas de esquerda, insistindo que Lula é inocente, eu vou fortalecer minhas crenças originais. De modo geral, as pessoas gostam de se achar inteligentes e querem evitar tensão psicológica e, para isso, acabam refutando os fatos que ameacem seus egos.
Acredita que Paulo Gustavo, seu amigo, foi vítima desse negacionismo?
Políticos negam a realidade e os fatos científicos com um objetivo. Gostam de desconstruir fatos, de modo que se projetem como a única fonte de verdade. Assim, estarão blindados de qualquer ‘notícia’ que ameace sua perpetuação no poder. Não acho que Paulo foi vítima do negacionismo diretamente. Admitir isso seria culpar uma ideologia e, no caso do Paulo, há uma pessoa a quem podemos atribuir a culpa: Jair Bolsonaro. O Presidente fez uso do negacionismo ao minimizar a gravidade da pandemia em incontáveis ocasiões, rejeitou as diversas ofertas da Pfizer, assim como do Butantan. Não posso afirmar que o negacionismo matou Paulo, até mesmo porque pessoas morreram até mesmo em países onde não houve negacionismo. Contudo, as atitudes negacionistas do Presidente aumentaram — e muito — as mortes no Brasil.
Você recebe muitas “ameaças” nos vídeos que você posta sobre o assunto? Como reage?
Recebo muitos xingamentos, mas ultimamente tenho feito vídeos nos quais ‘rebato’ comentários negacionistas. As pessoas adoram! Com uma pitada de deboche, tenho usado a verdade como arma, a ciência, para combater o negacionismo, além de desmascarar algumas das maiores mentiras que têm circulado nas redes sociais.
Você é casado com o Anderson. Tem ou teve receio algum dia de ser “atacado” por isso?
A homossexualidade é algo bem comum no meio das Relações Internacionais — talvez não seja para pessoas como o ex-ministro Ernesto Araújo (risos), mas acredito que grande parte dos estudiosos da área tenham uma visão suficientemente ampla de mundo para entender que a orientação sexual de alguém não define sua inteligência ou caráter. Algo muito legal que Paulo Gustavo nos ensinou foi justamente isso: usarmos nossos próprios exemplos de vida para desmistificar preconceitos.
Hoje em dia, não se pode ser neutro, ou você é execrado, como vem acontecendo com alguns artistas. O que acha disso?
Neutralidade e indiferença são duas coisas divergentes. Uma pessoa indiferente a quase 500 mil mortes não me parece ser uma pessoa empática. Agora, uma pessoa neutra, no sentido de não querer tomar um dos dois extremos políticos (Lula ou Bolsonaro), para mim, essa pessoa é, sim, sensata. Acredito que diversas bandeiras que são essenciais para nosso desenvolvimento como país foram sequestradas pelo PT. Hoje, é comum que uma pessoa que fale, por exemplo, em feminismo ou políticas LGBTQIA+ seja classificada como petista. Na minha visão, não podemos deixar que o mesmo aconteça com a luta pelas vacinas. Todos deveriam se posicionar. Se fizermos isso, atacaremos um populista de direita, tirando a munição do populista de esquerda.
Excelente!!