O Brasil produz santos, padrinhos, gente abençoada, não importando a fé, a religião nem que a pessoa seja oficializada nessa posição. A mistura de crenças, as pajelanças, os rituais não respeitam dogmas, nem princípios. É dessa matéria-prima que emerge a mais importante figura brasileira, Cícero Romão da Silva, o Padim Ciço, que é mais do que um santo milagreiro – é a maior metáfora do brasileiro e sua religiosidade. O espetáculo Cícero – A anarquia de um corpo santo”, novo solo do ator Samir Murad, escrito e idealizado pelo próprio ator, encerra a trilogia sobre Teatro, Vida e Genealogia, retrato do mundo místico em torno do mito.
Em um cenário que é um caminho de peregrino, com tecidos nas laterais, Samir não está só, e empresta corpo e voz a diferentes nomes que passaram pela vida de Cícero. A brilhante direção de Daniel Dias Silva vai para o caminho de avançar sobre o monólogo e compor um painel no qual emergem desde a beata, a Cícero menino, aos seus diálogos com o divino, as suas fragilidades e as suas visões. O extraordinário desempenho de Samir ultrapassa um ator em cena. Além da voz, as mudanças do corpo permitem novas luzes sobre tipos comuns e, muitas, vezes, caricaturados. Ao tirar o aspecto parodístico, encontramos um exercício de expor e contrapor o humano ao divino, o cotidiano à vida eterna, a santidade ao pecado.
Ao optar por não contar a trajetória de Padim Ciço, nem cronológica, nem por ambiente físico, o que vemos é o questionamento da santidade, da fé, do que é a dúvida. Mais do que isso, encontramos o grande ato em sua essência. Não existe nem gênero, nem idade, nem naturalidade para passar verdade na intepretação. O que Samir nos dá é a forte emoção do encontro do homem com a sua humanidade.