A história de Luana Muniz, a dona do bordão “tá achando que travesti é bagunça?”, que morreu em 2017, aos 59 anos, vai estar nos telões de Nova York, no dia 26 de outubro, no “NewFest”, festival de cinema LGBTQ da cidade americana, com o documentário “A Rainha da Lapa”, do casal Carolina Monnerat, produtora brasileira, e Theodoro Collados, diretor e produtor americano, que moram em NYC.
Numa das visitas à família no Brasil, Carolina, que nasceu e cresceu na Glória, e Theodoro, circulavam pelo bairro, procurando personagens para um ensaio fotográfico, naquele baralhão da Lapa, cenário multicultural, onde se veem desde personagens extravagantes até crianças, antes e depois de a noite cair. Conversando com figuras pitorescas, eles chegaram a um nome: Luana, “A Rainha da Lapa”, uma versão contemporânea de Madame Satã. Apaixonaram-se.
Luana ficou famosa depois de uma cena do “Profissão Repórter” (2010), em que batia e dava pontapés num possível cliente que estava fazendo com que ela perdesse tempo e dinheiro na madrugada, gritando a frase que virou meme. No entanto, o casal descobriu que Luana superava, em muito, o bordão. Ela foi uma das fundadoras do projeto Dama, da Prefeitura, que capacita travestis e transexuais para o mercado de trabalho; presidente da Associação dos Profissionais do Sexo do Gênero Travesti, Transexuais e Transformistas do Rio, que funciona num casarão também na Lapa, onde acolhia travestis, transexuais, prostitutas e moradores de rua e tratava a todos como uma mãe. Alcione é madrinha do projeto. Na sala de reuniões da casa, centenas de fotos de Luana nas paredes, ao lado de nomes que vão de Camila Pitanga ao padre Fábio de Melo.
Luana começou a se prostituir aos 9 anos, em plena ditadura militar. Trabalhou em vários bairros, atendendo até 50 clientes por dia; aos 20 anos, foi morar em Paris. Ela tinha tripla cidadania: brasileira, italiana e portuguesa, quando voltou da Europa, surgiu a ideia de trabalhar pelos direitos dos travestis e, em 2002, fundou a associação “porque o tempo da navalha e da faca já passou. Agora devemos lutar, falar de nossos problemas, cumprir com nossos deveres para exigir nossos direitos, ainda que sempre apareça alguma que envergonha a categoria”, disse à época. Nisso, passaram-se 48 anos de “calçada” e 37 de carreira artística, interrompida depois de uma forte pneumonia.
Como vocês conheceram a história da Luana?
Eu nasci no Rio e morei na Glória. Numa das visitas à família, meu marido estava fazendo um ensaio fotográfico com pessoas na rua. E na Glória tem muitos profissionais do sexo. Por várias vezes ele viu as meninas trans na rua, às seis da tarde, quando ainda tem criança voltando de escola, indo para casa do trabalho e o interessante é que existe uma harmonia, com todos juntos e misturados. Ele achou aquilo muito interessante, bonito. Então começamos a procurar quem era o dono do bairro. E foi assim que a gente descobriu a Luana. Pesquisamos e começamos a ler sobre ela e ficamos encantados. Ela é uma ativista, um pessoa incrível que mudou e moldou o que significa ser uma trabalhadora do sexo travesti no Brasil.
E qual foi o próximo passo para filmar a história?
Conseguimos descobrir onde ela morava, mas ela não queria falar com a gente, cansada de como as pessoas exploravam o assunto. Então pegamos umas fotos do Theo, escrevi uma carta e implorei ao porteiro para entregar. Quando chegamos em casa, o telefone tocou. Corremos de volta para a Lapa e, naquela noite, viramos amigos. Então soubemos do casarão, da associação que ela criou. Daí o ensaio fotográfico cresceu e pensamos no documentário. Voltamos para os EUA, tentamos arrecadar verba para o filme, sem sucesso. Em 2016 voltei para o Rio e conseguimos um patrocínio pequeno, tiramos do nosso bolso e começamos a filmar.
Por quanto tempo vocês conviveram com Luana e o que mais chamou a atenção durante o processo do doc?
Passamos três semanas com a Luana e as 32 meninas que moravam lá na época. Uma grande dificuldade que tivemos foi a terminologia que elas usavam, as gírias, porque eu não sou daquele mundo e não fazia ideia do que elas falavam. Pedi ajuda à jornalista Viviane Faver, que mora em Nova York, para ajudar a traduzir. Sem ela não teríamos o filme, mas até ela tinha dificuldades. Depois descobri que elas falam em pajubá, o dialeto criado por travestis. Palavras como ‘amapô’, ‘acué’, ‘equê’, ‘picumã’, ‘erê’, ‘edi’, ‘ocó’, ‘acuendar’ e por aí vai. Teve um dia que Luana nos acompanhava para fazer a ‘segurança’ até o táxi, e um senhor muito bêbado começou a implicar com ela. Ela pegou um cassetete na bolsa e começou a bater no homem na frente de todo mundo e ninguém fazia nada. Ela não batia pra machucar, mas pra mandar ele embora. Foi um momento em que pudemos ver o lado da violência, usada se necessária.
No processo, o que mais descobriram sobre Luana?
A Luana é uma artista, uma filósofa. As frases dela mereciam estar num livro. Ela foi corajosa ao sair de casa aos 9 anos, durante a ditadura militar, sobreviver e viver como travesti. Gostaria de fazer um livro. E ela era uma mãe, que não deixava os filhos fazerem besteira, era durona, mas abria os braços para dar amor, carinho, assistência por 24 horas. Uma das frases é “quando era pequena queria ser rica, famosa, linda, casada, mulher. Agora não quero ser mulher, quero ser travesti. Sou tratada como uma dama, mas se me ofendem, me transformo num macho, num diabo”, ou “me casei oito vezes, mas deixei os oito porque sou como Marilyn Monroe, valorizo mais os diamantes do que os homens. Diamonds are forever. Eu gosto mais de dinheiro do que de pau, o pau é um complemento”, e ainda “fiz várias cirurgias plásticas e só não fui operada na cintura, nas panturrilhas, nos pés, nas mãos e do pau. Meu pau está aqui, eu o amo, e, se pudesse, o aumentaria”.
Qual a mensagem que vocês pretendem passar com o doc?
Fizemos sem pretensão e propositalmente sem script. É para as pessoas assistirem e se sentirem dentro do casarão e mostrar que todo mundo é igual, tem sonhos, sofre. Não importa o gênero ou se está numa mansão, um hotel, no estúdio, somos todos humanos.
O filme já foi e vai para vários festivais internacionais. Como está a aceitação?
Incrível. Fizemos a estreia no ‘Sheffield doc fest’, um dos festivais de documentários maiores do mundo e foi maravilhoso, duas sessões lotadas, pessoas correndo atrás da gente nas ruas. Já ganhamos dois prêmios importantes (Rhode Island International Film e Sidewalk Film Festival) e está indo muito bem.
Como foi para vocês produzirem esse filme e pretendem trazê-lo ao País?
É o nosso sonho levar o filme ao Brasil. Mas é difícil. A gente passou sete meses tentando entrar em contato com o Festival do Rio (que vai acontecer em dezembro depois de um financiamento coletivo), e agora estamos cruzando os dedos para eles escolherem. É muito mais complicado do que imaginávamos e acredito que seria importante mostrar a humanidade das pessoas que fazem parte dessa comunidade LGBTQ sofrida, especialmente com o novo governo. Uma pré-estreia no Odeon, ali na Cinelândia, ao lado da Lapa, seria lindo. Se alguém estiver me lendo, fica o apelo.