Em poucas palavras, descrevo Danuza Leão como um “ato de criação” em si mesma.
A expressão é do filósofo francês Gilles Deleuze, que definia o “ato de criação” como um “ato de resistência”. Um ato que, em nome da vida, resiste aos seus opositores letais, incluindo entre eles as empresas do politicamente correto, que confundem bem e mal e, por meio dos quais, o poder é exercido atualmente na sociedade.
Um ato de resistência não é a ingênua oposição de uma coisa por outra. Não é o ato simplista da esquerda ou da direita querendo histrionicamente desconstruir opositores com chavões mentirosos e ofensas mesquinhas, mas algo novo que não se contamina com essa polarização moralista.
Nas crônicas de Danuza, as palavras “resistem” para liberar uma potência de vida que poderia estar em algum lugar oculta, aprisionada ou ultrajada. Essa potência de vida é o ato de resistência, que, muitas vezes, indica ser mais importante nos retirarmos. Não vale aqui o dito popular “os incomodados que se retirem”, mas, em nome da manutenção da dignidade, vale fazer coro ao poeta Manoel Bandeira: “Vou-me embora pra Pasárgada. Aqui eu não sou feliz. Lá a existência é uma aventura.”
A frase poética “a existência é uma aventura” também diz, em poucas palavras, muito sobre Danuza. No entanto, se me perguntarem, como psicanalista, o que entendo por aventura, só posso responder que a multiplicidade de significados com que lido na minha prática só agrega complexidade à palavra. Não é o lugar-comum de que precisamos, mas admitir a dificuldade e enfrentar aquilo que se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade e, sobretudo, da incerteza.
A aceitação da complexidade é a aceitação de que não se podem camuflar as contradições do mundo usando uma visão simplista e eufórica. Existe complexidade sempre. De certa forma, ela é, em si mesma, a essência da tragédia humana que, em última instância, está sempre em questão: a impossibilidade de se chegar a uma verdade absoluta. Sendo assim, quem pensa na complexidade não tem as questões das quais os políticos e asseclas se aproveitam para se promoverem à custa das dificuldades humanas.
Vivemos uma época trágica em que parece ser muito mais fácil negar a complexidade e simplisticamente lidar com os problemas de forma politicamente correta. A moral politicamente correta, seja de esquerda ou direita, quer sempre se apropriar da verdade absoluta. Para tal, em “nome da verdade”, precisam mentir o tempo todo e povoar com semideuses os lentos tribunais que acreditam tudo poder decidir. Com isso, eles podem desqualificar resultados da escolha popular em nome de ressentimentos narcísicos dos apadrinhados da derrota.
Do século XIX até meados do século XX, o temor da besta humana ocupava o imaginário e se apresentava em livros e filmes de terror que tratavam de duplos, como lobisomens, vampiros, monstros, estripadores. Em todos esses casos, tratava-se de lembrar aos seres humanos a presença insistente e perigosa de sua herança irracional que a tecnologia poderia fazer aparecer.
Na metade do século XX, bestas humanas, de fato, surgiram, apropriando-se da tecnologia: Hitler, Stalin, Mussolini, e a lista não parou mais. Todos se valeram da mídia; só a mídia e as empresas de tecnologia não sabiam disso. Ingenuidade é a moeda da arrogância.
O século XXI assiste ao surgimento de novas bestas que jogam aviões em prédios — tudo em nome da verdade religiosa absoluta que possuem. A tecnologia – que seus líderes desqualificam como sendo satânica — pode ser usada caso serva para matar e destruir, em nome de seus interesses. Porém, se não serve, contraria-os profundamente.
Os séculos XX e XXI assistem também a uma multidão de políticos e serviçais imbuídos da famosa lógica descrita por Shakespeare em Ricardo III, aquele rei que tinha uma deformidade física e muitos insucessos amorosos: “Mesmo a mais cruel das bestas sempre exibe um laivo de compaixão — besta não sou, portanto, compaixão não tenho”.
As bestas do politicamente correto são pegas em flagrante delito pelas câmeras, mas reivindicam com seus advogados que não deram autorização de imagem. As testemunhas, ora, ora, elas sempre mentem; fazem cara de indignadas. Grandes atores.
A crueldade das novas bestas é ilimitada para com o país em que vivem. Um país em que os aventureiros incompetentes tomaram conta de tantos setores que não sobrou mais lugar para a aventura sincera e criativa.