De fato, o espanto/perplexidade do meio cultural com a notícia da venda do Palácio Capanema salvou-o da insensatez da guilhotina ou de ser visto como mais um negócio vil, avaliado apenas pelos metros quadrados de salas a serem ocupadas por uma empresa particular qualquer. No entanto, o alarido foi utilíssimo, porque logo se desvendaram outros imóveis que estão a caminho do sacrifício, como a belíssima casa de Afonso Arinos, em Botafogo, cujas formas clássicas de um Botafogo épico, mimoseado por belos palacetes, serão golpeadas para que desabroche mais um horror, o infalível espigão sem nenhum caráter, mais um Macunaíma arquitetônico a enfeiar o perfil carioca. Como todos os que amamos e sofremos pelo Rio, estamos saturados de comprovar — e de reclamar.
Aliás, falando nisso, um atento defensor da cidade e dos malefícios que se ousam contra sua integridade urbanística acaba de me telefonar para anunciar que há um surto especulativo no Leblon para demolir pequenos prédios de dois a quatro andares para dar lugar a horrendos espigões, algo próximo ao desastrado plano do Prefeito Conde para provocar o mesmo trânsito especulativo em Ipanema. Quem lembra? Eu lembro e não perdoo.
Pois bem, na esteira da defesa e da futura ocupação do Palácio Capanema, surgiram assuntos urgentes.
Cortou-me o coração saber do estado de deterioração do prédio de 13 andares na Rua São José, que abriga o acervo precioso da Funarte, instituição de minha estima desde os tempos em que Manuel Diegues Jr. me levou a trabalhar com ele na então muito dinâmica Fundação Nacional de Artes. Lá estão cerca de dois milhões de preciosidades, entre coleções e arquivos pessoais de Fernanda Montenegro, Othon Bastos, Paulo José (saudades…), Eva Todor, Dina Sfat, Maria Della Costa, Djanira (sim, a grande pintora) e até Walter Pinto, além de publicações e manuscritos de João do Rio, Callado, Martins Pena e Oduvaldo Viana, pai, inclusive cenários originais de Gianni Ratto, Santa Rosa L. C. Ripper, a que se soma rara coleção de cartazes dos filmes lançados no Brasil de Vargas até os anos 80.
Isso para não citar arquivos de projetos históricos, como o Pixinguinha e os da Sala Sidney Miller, de que eu mesmo participei ao longo de décadas. O acervo artístico deste país parece hoje viver sem olhar algum, nem sequer de piedade, para com nossa memória comum.
Para contrabalançar essas descidas ao inferno, o diretor da Funarte, Nery Costa, acabou de interditar o edifício por temer, com razão, que o Cedoc (Centro de Documentação da Funarte) possa ter o mesmo destino do Museu Nacional ou da Cinemateca de São Paulo. Aliás, seria ululante (citando adjetivo cunhado por Nelson Rodrigues, registro que também ele é titular de documentos lá depositados) que todo o Cedoc fosse, de imediato, instalado no Capanema. E por que também não rogar às autoridades (se de fato existirem) que peçam a Cinemateca de volta a São Paulo, que a fez crepitar em incêndio por desdém e abandono?
O repórter Gustavo Cunha informou, em O Globo, que o destino inicial do Cedoc seria o Museu Casa da Moeda, na Praça da República, um imóvel tombado, construído há mais de 200 anos, cuja estrutura é antiga e toda feita de amplo madeirame. Acresce que o acervo Cedoc pesa toneladas em pastas de papel. Por trás dos panos, antigos funcionários que exigem anonimato queixam-se de que a interdição do prédio da São José serve como uma luva para os planos de desativar ou privatizar a Funarte. Para quê?
Corro a acrescentar aqui que, entre os dois milhões de preciosidades, o Cedoc, agora interditado, preserva ainda acervos raros das rádios MEC e Nacional, esses do meu particular interesse, e até teses acadêmicas.
Portanto, eu me estenderia sobre mais observações, que relaciono apenas para comentários posteriores, como a reativação do Canecão, antiga luta nossa por ser um desperdício absurdo de espaço nobilíssimo da cidade.
Ou a inoportuna mania de mexer em fatos consolidados, como o logotipo da Fundação Palmares, o martelo de Xangô, símbolo afro-brasileiro da justiça. A agora desacreditada Palmares precipitou-se e lançou edital para nova logomarca. Acreditem, é verdade. Martinho da Vila foi breve: “A Palmares acabou. Ponto final.”
Pretendia dedicar duas palavrinhas à grossura do meu antes estimado Sérgio Reis ao ameaçar ações absurdas, como arremeter caminhoneiros contra o STF no próximo 7 de setembro. Ou a recuperação de pontos referenciais da estima geral, como o Bar Vilarinho, e agora a volta da Fiorentina do Leme, a casa de todos os artistas.
Enfim, entre um soluço e outro, ainda há prazeres — raros, mas há.
Ricardo Cravo Albin é jornalista, historiador, pesquisador musical e criador do Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, que tem mais de sete mil verbetes e referência na área musical. Acaba de lançar o livro “Pandemia e Pandemônio” (Editora Batel), com crônicas e recomendações da escritora Nélida Piñon, e dos médicos Margareth Dalcolmo e Jerson Lima.