Aglomerar: misturar, agregar, fundir, aglutinar, bagunçar, reunir. Que sentido faz aglomerar? A ordem dos sinônimos altera o produto: reunir, misturar, bagunçar, depois agregar, aglutinar e fundir. Eis uma receita de baile.
Desde criancinha, amo a festa, a confusão, a combustão carnavalesca. Na maternidade, o meu primeiro berro não foi choro, foi um grito de carnaval. Por obra do destino, nasci num sábado da folia, no Rio, quando o Baile do Theatro Municipal bateu recorde; dez mil pessoas se aglomeraram dentro do Opera tupiniquim. Por acaso, vocação e profissão, sou um aglomerador de nascença.
Um mês antes da pandemia se instalar no Brasil, fizemos a mais desafiadora edição, em 12 anos, da festa de carnaval que produzo, o Baile do Sarongue. O evento se destaca pelas instalações de artistas plásticos criadas para a festa.
O projeto é elaborado durante o período de um ano, para, em uma única noite, realizar o ritual completo, resultado da química de vários fatores. A finalidade do conjunto é induzir ao êxtase carnavalesco coletivo, dissolvendo egos e fantasias, na combustão festiva do salão em aglomeração.
Algo especial aconteceu na edição pré-pandemia de 2020, no Baile do Sarongue Retrofuturista no Museu do Amanhã. Alegoricamente, o baile atravessou o samba, antecipou o tempo.
Logo à entrada, a artista convidada, Laura Lima, criou um túnel de gente, numa das profundas galerias laterais do museu. Revestido em papelão, o túnel era composto por cerca de 150 pessoas embutidas na sua estrutura, deixando parte dos seus corpos aparentes. Para alcançar o salão, os foliões penetraram no longo túnel, interagindo com centenas de braços, pernas penduradas, cabeças destacadas, seios e nádegas anônimas expostos dos participantes – todos ligeiramente coreografados pela artista, de forma a haver maior contato possível entre os corpos que passavam.
Os foliões que passaram pelo túnel do último baile pré-pandemia jamais imaginavam que, em menos de um mês, acordariam num mundo onde um simples aperto de mão seria condenado. Em meados de março de 2020, desembocamos num inimaginável mundo “untouch”, cercado de não-me-toques. Visto da perspectiva atual, a obra foi premonitória; aliás, a noite em si o foi. A Rainha Momo e a noite foram coroadas pela orquestra executando o samba “Como será o Amanhã”. O público, em coro no refrão, ainda ecoa:
“Como será o amanhã?
Responda quem puder
O que irá me acontecer?
O meu destino será
Como Deus quiser…”
De lá pra cá, não teve festa, não teve baile, não teve carnaval. Com boates, danceterias, rodas de samba proibidas e restaurantes mais fechados que abertos, a vida social morreu, o setor de entretenimento se desmantelou. Nem a praia sobrou. O ambiente mais saudável da cidade precisou dar o “exemplo”. Vira e mexe, a praia está proibida — compreensivelmente, por ser uma medida moral-sanitária; inaceitavelmente, por ser custeada pelos pobres comerciantes.
Lançar um projeto de revitalização do setor de entretenimento por parte da prefeitura é emergencial! Para uma cidade como o Rio, os setores responsáveis pelo lazer são essenciais, integram a sua personalidade, dão vida aos demais. O Rio sem o riso é uma província banguela.
Por outro lado, o marasmo festivo em que entramos pode preceder uma tempestade de oportunidades. Até que se prove o contrário, crises e oportunidades são dois lados da mesma moeda, nunca se desgrudam.
Durante o confinamento, pude mergulhar num projeto antigo, que, de forma surpreendente, regenerou-se devido às adversas circunstâncias. Há mais de dez anos, imaginei, com os amigos Márcio Botner e Ernesto Neto, um quiosque no Arpoador que fosse uma espécie de galeria, de centro cultural a céu aberto. No pior momento da história para o setor cultural e de serviços, contando com o apoio e entusiasmo da Orla Rio, concessionária dos quiosques da praia, inauguramos, no calçadão do Arpoador, o Alalaô Kiosk, o primeiro voltado para cultura e sustentabilidade.
Desde fevereiro, entre decretos de abre e fecha, produzimos três exposições ao ar livre, no calçadão entre a praia e o quiosque. Nesse período de liberdade restrita, pude constatar que o público da orla, seja carregando uma caixa de isopor, seja um charuto na boca, respira melhor quando se surpreende com uma exposição ou com uma instalação artística no meio do caminho. São admiráveis a diversidade e a quantidade de pessoas que veem, leem e se interessam por cultura quando ela é acessível.
No Alalaô, investimos em microutopias a céu aberto; mega, somente a vontade e o conteúdo. Apostamos em pequenas novas ideias que nascem na praia. Há um século, a praia deixou de ser mera paisagem; hoje, ela é o maior ativo ecológico, social, cultural e financeiro carioca. Acreditamos que a praia possui a força simbólica para ser agente transformador da cidade pós-pandêmica.
Jamais imaginei que fosse necessário e possível interditar as praias de Copacabana, Ipanema ou Leblon, seja lá o motivo. Esse fato, que, de impossível passou a corriqueiro, confirma a força moral que a praia exerce sobre a cidade. Como não aproveitá-lo para lançar uma agenda positiva integrada ao lazer no pós-covid? A Prefeitura coordenaria uma plataforma de inteligência praiana voltada para os desafios contemporâneos. A praia assumiria uma nova camada, vitrine de novidades culturais, socioambientais e tecnológicas – do reaproveitamento energético de dejetos à empregabilidade.
Polo de convergência social, a praia do Arpoador possui uma característica pouco conhecida: após duras penas no sistema prisional, o egresso, ex-detento, evidentemente com sede de horizonte, procura emprego no local. Invisíveis, essas pessoas se reintegram a partir da praia. Por que seria diferente para um ex-confinado pandêmico? Mais que um objeto do desejo, a praia também é terapêutica.
É comum ouvir que o período pandêmico funcionará como um acelerador de tendências já existentes; como o trabalho, tudo tende a ser à distância. Nessa linha, ausência de contato físico seria um novo selo de qualidade de produto; a vida presencial seria tecnologicamente esvaziada. Muitas dessas tendências já se consolidaram, mas desconfio da abrangência da tese.
A humanidade não segue uma história linear. As mentalidades se renovam movidas por ações e reações. Relembro o recitado carnaval pós-Gripe Espanhola, aclamado como o mais libertino de todos os tempos, uma revanche da vida sobre a morte pós-pandemia do outro século. No repuxo da Espanhola, a Bailarina da Morte, um efeito chicote aconteceu.
Por convicção ideológica, confio nas linhas tortas.
Diante de teorias da conspiração e apocalipse, sigo imaginando que danças novas surgirão nas boates e nos bailes, quando a aglomeração tiver sua revanche.
Apesar de toda a incerteza, um dia sairemos desse túnel de “não-me-toques”. Em que baile acordaremos? Momo ressuscitará antes que o dicionário adote “arriscar-se” para um novo sinônimo de aglomerar-se?
Que momento para estarmos vivos!
Marcus Wagner, designer, carioca. Criador do Baile do Sarongue, que completou 12 anos em 2020, evento que funde o tradicional carnaval de salão com arte contemporânea; do projeto Alalaô, associação que promove arte pública, com os sócios Marcio Botner, Lula Buarque e Eduardo Senna; e do Alalaô Kiosk, primeiro quiosque cultural do Rio, na praia do Arpoador. Autor de publicações tendo em comum a memória carioca e a cultura festiva da cidade, por exemplo, “Rio Cultura da Noite, uma história da boêmia carioca”, em parceria com Leo Feijó (editora Leya). É também coautor do livro “Letreiros”, com Mari Stockler, inventário visual da cidade do Rio, Biblioteca Rio 450 anos.