Com a psicanálise, aprendemos que o elo afetivo não decorre de mero ato de vontade, imposição legal ou jurídica. Muitas são as causas inconscientes que podem conduzir à ausência de desejo e ao abandono. Com o Direito, sabemos que muitos são os fatores conscientes que podem levar um ente paterno a abandonar seu filho, como, por exemplo, a alienação parental e o afastamento deliberado promovido pelo outro da relação parental. Sejam por quaisquer dos fatores, inconsciente ou consciente, se o desejo de estar perto não teve húmus suficiente para se manifestar e, assim, bem desenvolver a criança, melhor evitar que se torne erva daninha, o que não afasta a tentativa de semeadura, mas nunca a ditadura jurídica do afeto.
Há dez anos, a Terceira Turma do STJ, por decisão não unânime, nos termos do voto da Ministra Nancy Andrighi, condenou um pai ao pagamento de indenização por danos morais causados pelo abandono afetivo à sua filha. Segundo a ministra, não se trata de discutir o cabimento da responsabilidade civil no âmbito familiar, tampouco de monetarizar os afetos. Do que se trata então? Trata-se do estrito cumprimento da lei: “Amar é faculdade, cuidar é dever”, respondeu a Justiça, como se cuidar fosse possível sem amor. Deveres de cuidado e de convivência do genitor para com o filho, do qual não tem a guarda, nem o desejo de estar próximo.
Apesar de essa tese se propor à defesa da dignidade da pessoa humana, cabe ainda indagar, depois de uma década: seria possível cuidar e conviver sem desejo? Cabe ao Poder Judiciário tutelar o afeto? O vínculo legal deve prevalecer ao afetivo? Que qualidade de convívio se busca? Juristas que sustentam o dever de convivência, mesmo inexistente o afeto, condenando quem não o manifesta, são os mesmos que defenderam a louvável decretação do divórcio independentemente de culpa, diante da ausência de afeto.
Enquanto o campo jurídico tratar a falta, a frustração e a tristeza como patologias, haverá decisões que imporão o vínculo legal e a indenização como medicamentos para os sintomas de um leucêmico laço afetivo, como uma “obrigação inescapável”.
Nesse aspecto, a comentada decisão se alinhou perfeitamente à sociedade contemporânea em sua dificuldade de lidar com as dores humanas. Absorvendo os traços contemporâneos do hiperconsumo, próprios do neoliberalismo, em que o afeto vira likes e moeda em relações cada vez mais contabilizadas a crédito e a débito, o Direito vem ensejando intensa jurisdicionalização das relações afetivas em busca do ilusório estado de conforto.
Como alerta Michel Foucault, a promiscuidade entre família e Estado se destina ao controle social como elo entre a política de internamento e a política mercantil. Controle total com vistas à suposta saúde do sujeito, cada vez mais entorpecido pelos efeitos de psicotrópicos e medidas jurídicas a serviço de um semblante de felicidade, pronto para consumir objetos e pessoas. Tentativa vã de dissimular as tristezas, ainda que coerentes com as experiências vividas. Quando o entendimento judicial “mima” o ordenamento jurídico e diz “se a lei quer, a lei tem”, promove-se a infantilização do sujeito, que, sem defesas, sucumbe às vicissitudes da vida. Para o psicanalista Jean-Pierre Lebrun, “uma família harmônica não necessariamente faz de um jovem uma pessoa capaz de suportar o sofrimento inerente à condição humana”. Tem algo aí de incontrolável, não mensurável.
A pretensão do Poder Judiciário de responder a tais demandas afetivas acaba por desautorizar a função paterna, desvitalizando o sujeito. O pai é chamado à Justiça, não para se tornar presente na vida do seu filho, mas para ser substituído pelo dinheiro. Contudo, não há compensações pecuniárias, porque o afeto ou a sua falta é bem infungível ao dinheiro. Na maioria das vezes, pais ausentes sempre o foram, antes mesmo da separação física de seus cônjuges e filhos. As teses em defesa da reparação financeira em caso de abandono afetivo consideram o “bolso a parte mais sensível do corpo humano”, entendendo que, arrancando do pai “a libra de carne”, para pagar o seu débito junto ao filho, poder-se-ia reparar o suposto dano, bem como, de forma pedagógica, desencorajar outros pais a replicar a negligência afetiva. Os juristas que sustentam o dever de convivência, mesmo inexistente o afeto, são os mesmos que defenderam a louvável decretação do divórcio independentemente de culpa, diante da ausência de afeto.
Não obstante o convívio direto, supostamente harmônico, os filhos reclamam da ausência dos pais e da falta de interesse em seus assuntos. Por outro lado, os “excessos” levam sujeitos aos divãs. E aí indagamos: pais que devastam a subjetividade de seus filhos também devem ser condenados pelos danos causados?
Em 2009, fui consultado por uma mãe e seus dois filhos adolescentes sobre a possibilidade de se ingressar com a ação de indenização por danos morais causados por abandono afetivo. Não senti no discurso da mãe o intento de pôr os filhos contra o pai. Minha cliente clamava por sua aproximação junto aos filhos. Mas, diante dos sentimentos de mágoa e tristeza experimentados pelos filhos, que os conduziram a tratamento psicoterápico, pretendiam então ser indenizados pelos danos sofridos. Quis saber a respeito do comportamento do pai antes da separação. Responderam-me que o pai nunca estivera presente, mesmo no tempo em que residia sob o mesmo teto. Como de hábito, pus-me a estudar artigos e decisões judiciais sobre o tema para subsidiar o patrocínio da ação indenizatória em favor de meus clientes.
Participei de um Congresso Nacional, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) naquele mesmo ano, que tratou da responsabilidade na família em seus aspectos jurídicos e psicológicos. Mergulhei nos conceitos psicanalíticos de afeto, desejo, desamparo, responsabilidade e ética para compreender, agora sob uma nova ótica, o problema do abandono afetivo perante o Poder Judiciário. A partir da escuta — a mãe e cada um de seus filhos — bem como, de suas respectivas psicanalistas, concluímos em conjunto pelo não ajuizamento da ação indenizatória. Essa experiência, que marcou minha vida pessoal e profissional, me levou ao Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade e à formação psicanalítica.
A partir da minha posição contrária à judicialização dos afetos e indenização por abandono afetivo, criei o Instituto Multidisciplinar Oliveira Braga — por um Direito dos Afetos (IM/OB), com o propósito de humanizar o campo jurídico através da interlocução entre o Direito e outros saberes, como a psicanálise, a arte, a filosofia e etc. A referida instituição, cuja inauguração será no próximo dia 20 de maio, com sede no Rio de Janeiro, vai oferecer uma equipe multidisciplinar para dar apoio a pais e filhos, visando à construção de um elo afetivo desejado e não imposto, se possível. Prestará assistência às demais pessoas em situações de conflito, promovendo ações críticas, pesquisas, grupos de estudos, palestras, workshops, cursos, mentoria a advogados e escritórios, convênios com órgãos de justiça e universidades. Acredito que ninguém possa ser obrigado a amar alguém e que a falta não pode ser compensada por dinheiro. Afinal, quanto custa o amor? Pode-se tabelar o amor? Na era do triunfo do neoliberalismo, parece impossível se pensar que os afetos estão além do dinheiro.
Creio na afirmação do sujeito, que multiplique sua potência de vida em direção à liberdade, através da mediação simbólica, tão cara à Psicanálise, para onde caminha finalmente o Direito dos novos tempos.
Julio Braga é advogado, graduado em Direito pela UERJ, especialista em Direito Privado pela UFF, professor, palestrante, psicanalista do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise do Rio. É autor do livro “Indenização por abandono afetivo: do direito à psicanálise”.