Minhas tentativas de entender o ser humano esbarram sempre em questões muito prosaicas.
O ser humano é capaz de mandar uma sonda até os confins do sistema solar — mas não consegue ficar à direita na escada rolante, dando passagem a quem acha que aquilo, apesar de rolante, não deixa de ser uma escada.
O ser humano é capaz de desenvolver, em tempo recorde, uma vacina contra a Covid-19 — , mas não espera você sair do elevador para, só então, entrar.
Claro que não é o mesmo ser humano que manda a sonda, tranca a escada rolante, desenvolve a vacina e te bloqueia a saída do elevador — mas são todos da mesma espécie. Com o mesmo volume de massa encefálica.
O ser humano inventou a marquise, que é uma cobertura em balanço, na fachada dos edifícios, e serve para proteger do sol, da chuva. Uma invenção linda, elegante, acolhedora. Mas alguém da mesma espécie esqueceu que, assim como o amor, a marquise precisa ser cuidada — ou vai se deteriorar e pode ruir.
Aí, um ser humano — de cepa similar à daquele que inventou a marquise — cria uma lei obrigando os síndicos a efetuarem a manutenção das marquises. E outro ser humano – da laia do que não cuida, não limpa, não conserva (e ainda assim, se candidata a síndico) — vai lá e derruba a marquise para não ter problema. E ficam uns prédios mutilados, como pálpebra sem pestana. E a calçada sem sombra, o pedestre sem abrigo.
Há os seres humanos que inventam coisas como o guarda-chuva e seres humanos que inventam coisas como o glíter.
O glíter serve para desgrudar facilmente da pele de quem quer usá-lo e grudar indelevelmente na de quem quer passar longe daquilo. Serve também para poluir os oceanos e causar danos à biodiversidade — mas o que é uma baleia intoxicada diante de um olho todo vestido de dourado?
Nem sempre duas coisas positivas resultam numa terceira duplamente positiva. Junte-se, por exemplo, a marquise e o guarda-chuva. Num dia de chuva (e dia de chuva é o que não tem faltado), fazem falta as marquises (em que pese o risco de estar abrigado sob uma delas numa cidade como o Rio de Janeiro) e os guarda-chuvas (os de verdade, não esses descartáveis, vendidos pelos camelôs). Mas aí entra na equação, de novo, o ser humano. Não o da espécie que inventou marquises, guarda-chuvas, sondas interestelares ou vacinas, mas do tipo que trava escada rolante, bloqueia sua saída do elevador, manda demolir marquise e usa glíter (não tudo isso ao mesmo tempo, ainda que eu não duvide que exista gente assim).
E aí temos o sujeito que, na hora da chuva, se abriga, de guarda-chuva, embaixo da marquise.
Repare, em dia de tempestade, as marquises que restam. Ali estarão, enfileirados, dezenas de portadores de guarda-chuvas — enquanto os que esqueceram o guarda-chuva em casa chapinham pelas poças, encharcados até o cerebelo.
Se eu fosse um progressista, desses que, em gestos largos, liberais e moscovitas, dão tudo quanto têm, na algibeira em que têm pouco (obrigado, Álvaro de Campos!), faria uma analogia com as injustiças, as desigualdades, o egoísmo. E acharia um jeito de culpar o capitalismo — aquele mesmo graças ao qual se projetaram a escada rolante e o elevador, se mandaram sondas aos confins do sistema solar, se construíram marquises e se inventaram o glíter e o guarda-chuva.
Mas, não. Apenas olho e desisto de entender o ser humano, enquanto chapinho nas poças feito um Gene Kelly sem ilusões.
Ilustração: Sydney Michelette Jr.