Chique mesmo era ter jardim de inverno.
Ainda que no norte de Minas o inverno fosse uma ficção, a casa da esquina — a mais chique da cidade — tinha um “jardim de inverno”.
Da rua, não se via. E isso era parte da chiqueza: havia ali um jardim de inverno — fosse isso lá o que isso fosse — e ele estava resguardado da vista dos mortais (ou dos transeuntes, o que dava na mesma).
Chique era ter suíte.
A casa da minha avó nem banheiro tinha. Havia, sim, uma casinha, lá fora, acocorada sobre o barranco. O vaso sanitário era o vão da tábua que faltava no piso, e através desse vão se via a ribanceira e o ribeirão (que poderíamos chamar de “descarga ecológica’) correndo lá embaixo. No hotel dos meus outros avós, era um banheiro só, no fundo do corredor, e uma profusão de penicos sob as camas.
Lá em casa, também banheiro único — para meu pai, minha mãe, meu avô (que então morava conosco), cinco filhos e empregada. Não havia casinha lá fora, mas, eventualmente, era lá fora mesmo que se resolvia na hora do aperto.
Pois a casa da esquina tinha suíte. E suíte não designava o quarto ou o conjunto de quarto-e-banheiro, mas o banheiro trancado no quarto. “Suíte” era outro nome do banheiro quando este não se abria para o corredor, mas para o interior do quarto. Minha mãe achava nojento ter a privada a dois passos do travesseiro. Eu achava chique.
Chique era ter não um guarda-roupa, mas um armário embutido. E infinitamente mais chique era não ter nem um nem outro, mas um closet. Não sei se a casa da esquina tinha closet, mas devia ter. Tinha que ter. Se não tivesse, seria um pecado – impensável numa casa impecável como aquela.
Chique era ter sinteco.
Não a madeira nua, com seus veios compridos, do chão de tábuas corridas. Não os tacos lixados com escovão e palha de aço, encerados com Parquetina e polidos com flanela (a enceradeira elétrica veio depois, como um espóiler de como seria viver na casa dos Jetsons). Sinteko, ainda com K, dispensava palha de aço escovão flanela: era uma laca, um esmalte com jeitão de casca de barata, que deixava o chão mais que brilhante: brilhoso.
Chique. Muito chique. Esse, lá em casa, até tinha. Mas como o sol entrava, implacável, pelas janelas, nosso chão de casca de barata logo estava todo craquelado, feito asa de gafanhoto. Chiqueza de pobre dura pouco.
Chique era não ter telhado, mas laje. É certo que nossa casa — ao contrário da casa da minha avó, ou do hotel do meu avô — também tinha laje. Mas não era mais que um forro de cimento (a casa de minha avó era de telha vã; o hotel do meu avô tinha forro de tábuas como as do piso). Nossa laje era envergonhada, e cobria de telhas suas vergonhas. A da casa da esquina era de outra cepa: laje senhora de si, que se projetava diante da porta de entrada numa marquise.
Marquise era chique demais. Lojas tinham marquise; casas tinham, no máximo alpendre. Uma casa com marquise carregava um quê de centauro, de harpia, de quimera. Não bastasse, na lateral havia algo ainda mais extraordinário: uma marquise desdentada, a que chamavam pérgola.
O que tornava a pérgola mais chique que todo o resto era sua absoluta inutilidade. Estava ali como um troféu de caça, um monograma. um galardão. Não protegia do sol, não protegia da chuva, não servia de arrimo para trepadeira. Era um eloquente inutensílio arquitetônico — logo, uma maravilha. Chique no úrtimo.
Cinquenta anos depois, entrei no Google Street e tentei revisitar aquela esquina. A casa não existe mais. No seu lugar, um predinho horroroso, de três andares.
Talvez eu tenha me tornado arquiteto por causa dessa casa, moderna e já morta. Por causa da inveja, do estranhamento e do fascínio que ela me provocava. Fui rever esses sentimentos já na faculdade, quando exibiram “Mon Oncle”, do Jacques Tati. E tive saudades da telha vã e do piso de vermelhão, do fogão de lenha, da casa da minha avó. E das tábuas corridas, das portas com bandeiras de vidros coloridos, das altas janelas de guilhotina do hotel do meu avô (e onde a água do banho era aquecida através das serpentinas que passavam por dentro do fogão de lenha).
A casa de minha avó (hoje remodelada, e sem a descarga ecológica) e o hotel do meu avô (hoje em ruínas) eram chiques — e eu não sabia.
Ilustração: Sydney Michelette Jr.