Cair é natural. É sinal de que pelo menos a lei da gravidade ainda é respeitada neste país.
Caímos de amores, caímos em golpes (às vezes, essas duas quedas acabam dando na mesma). Caímos na gargalhada, caímos de quatro (real e metaforicamente). Há quem caia das nuvens, há quem (muito mais grave) caia em si. Caem os juros, a chuva, cai análise combinatória na prova, cai o dólar (quase nunca), cai o Botafogo (quase sempre), cai um feriado na quarta, cai de moda a calça skinny (o que evita que muita gente caia no ridículo). Caem ao fim do espetáculo as cortinas. Pode-se cair no samba, no choro, na clandestinidade. Cai a internet (aqui, praticamente todo dia). Por fim, caímos duros — e, sem querer falar em etimologia numa hora dessas, é sempre bom lembrar de “cadáver” quer dizer “caído”. No caso, para nunca mais.
Caí outro dia. Não o tombo da perda de equilíbrio, da embriaguez, do descuido, da vista cansada – ou por motivo de pedra portuguesa, desvão na ciclovia ou raiz de amendoeira.
Caí porque o chão, sem aviso prévio, ergueu-se na vertical e veio com tudo na minha direção. Numa reação automática, tentei empurrá-lo com a mão e o joelho, mas quando ele vem assim, decidido, não recua ante argumentos tão frágeis.
Não há muito o que eu possa contar da experiência, por não saber muito bem o que se passou entre o momento em que atravessava a rua e o instante seguinte, em que já me encontrava atravessado no asfalto, atrapalhando o trânsito. Sei apenas que um caminhão freou, que um flanelinha diversificou suas atividades, vindo me rebocar, que os cachorros gozaram de alguns instantes de liberdade e que pouco depois senti na pele o significado de “escoriações generalizadas”.
Gatos, crianças e vasos ruins caem sem maiores traumas. Tombos e experiência de vida não são, entretanto, uma combinação muito auspiciosa. Minha bisavó Margarida caiu a certa altura da vida (um porco, desconhecendo a Lei de Newton, quis ocupar o lugar onde ela se se encontrava) e ficou “entrevada”. Hoje acho que ninguém mais se “entreva”, mas entrevava-se muito nos anos 50, e a bisa morreu entrevada.
Eu caí por algo mais prosaico que um porco, um cadarço desamarrado, ou o afã do Tião em atravessar a rua. Caí porque o coração achou que era hora de mandar um recado: ou me trata bem ou vai ter que se virar sem mim. Poderia ter feito isso por e-mail, mensagem de voz, bilhete sob a porta — mas o coração tem razões que o bom-senso desconhece.
Desde então, dei para paparicá-lo. Vejo de hora em hora se ele está se sentindo sob pressão (os 18 x 11 de antes sofreram uma deflação e andam na casa dos 15 x 9). A batucada dodecafônica virou batidinha de bossa-nova. Amigos mandaram flores, tortas (o coração prefere as flores, nas quais o estômago não vê graça nenhuma — então é bom que ambos estejam contemplados). Parei de chamá-lo de insensato, leviano, descuidado; de coração bobo, de papel, de melão, de bandido corazón. Arranquei dele as flechas sorrateiras, cheias de veneno. Impedi que se tornasse um pote até aqui de mágoa. Agora é um coração alado, de eterno flerte, e há momentos em que, mesmo depois de tanto pau e tanta pedra, parece haver promessa de vida no meu coração.
Vou procurar me exercitar, restringir o colesterol com tornozeleira, manter distanciamento social de pessoas tóxicas e ir negando as aparências, disfarçando as evidências e tentar seguir fingindo para ver se, da próxima, consigo enganar meu coração. Mas, por via das dúvidas, começo já a andar de luvas, capacete e joelheira.
Ilustração: Sydney Michelette Jr.