Uma máscara, várias facetas. Assim podemos apresentar Nathalie Moelhausen, considerada hoje a mais importante esgrimista das Américas, a quarta colocada no ranking mundial. É ela quem vai representar o Brasil nos Jogos Olímpicos de Tóquio, entre 23 de julho e 8 de agosto. Nathalie conquistou a inédita medalha dourada no Individual de Espada Feminina para o Brasil depois de vencer a chinesa Sheng Lin no Mundial de Esgrima de Budapeste, na Hungria, em 2019.
Além de campeã mundial, aos 33 anos, a italiana naturalizada brasileira, que mora há 15 anos em Paris, teve o primeiro pódio da história do País na competição. Nascida na Itália, Nathalie é filha do alemão Philippe Moelhausen e da estilista ítalo-brasileira Valéria Ferlini. Quando ganhou o ouro, ela beijou a tatuagem que tem no pulso esquerdo, uma homenagem ao pai, que morreu em março de 2018, aos 63 anos, de infarto.
No início de carreira, Nathalie defendeu a Itália, um dos países com maior tradição na esgrima, mas, depois de 2012, perdeu espaço na equipe italiana e partiu para outras áreas — foi modelo, estudou Filosofia na Sorbonne e focou no trabalho como diretora de arte. O Brasil entrou em sua vida em 2014, quando foi convidada para um projeto de esgrima aqui. Desde então, Moellhausen foi medalhista de bronze nos Jogos Pan-Americanos de Toronto 2015 e chegou às quartas de final na Olimpíada Rio 2016.
Nesses quase dois anos de pandemia, a vida da atleta foi intensa não só nos treinamentos mas também nos projetos pessoais, como a empresa 5touches, plataforma online que une o esporte a outras áreas, como artes, dança, moda, música, cinema e gastronomia, que pretende lançar depois dos Jogos Olímpicos.
O que mudou de 2020 pra cá? Como foi a sua vida na pandemia, tendo uma Olimpíada pela frente?
Quando a pandemia começou, faltavam três meses para os Jogos Olímpicos (que seriam no ano passado e foram adiados), e eu tinha acabado de ganhar um campeonato no ano anterior. Então foi realmente um momento em que pensei muito no que ia fazer. Não foi pesado porque consegui treinar até mais do que quando eu estava me preparando para uma competição, já que todos os torneios foram cancelados. Sei que aprendi muito nesse tempo e me lembro de ter falado para o meu preparador no dia em que começou o confinamento: “Agora você tem que me ensinar a treinar para mim mesma, para o meu prazer, não visando a um objetivo”.
Como foi seu treinamento?
Tive aulas de dança com uma amiga coreógrafa (a italiana Tiziana Pagliarulo) por dois meses. Então resolvi criar o Dança das Lâminas, uma performance unindo dança e esgrima, que gravei no monumento em homenagem às vitórias do rei Luís XIV — imaginei uma luta simbólica contra esse inimigo invisível, que é o coronavírus. Sou diretora de arte há 12 anos e sempre criei espetáculos e performances, mas quero levar isso para um outro nível depois dos Jogos Olímpicos e criar um projeto que seja acessível a todos, crianças e adultos.
O que você aprendeu de diferente que possa ajudar no desempenho?
Mais do que aprender, confirmei uma lição de vida, que é viver o presente. Quando meu pai morreu, em 2018, e também com a fragilidade que a pandemia trouxe, isso fez reforçar essa questão de saber trabalhar para melhorar sem projetar no futuro, porque, a qualquer momento, tudo pode mudar e, muitas vezes, não estamos preparados. A gente deveria aprender com a arte de perder. Como esgrimista, aprendi muito mais nas vezes em que perdi. Me ensinaram a aceitar a derrota e o fato de que não somos perfeitos e não controlamos o futuro. Quando perdemos esse medo de perder, é quando ganhamos porque, de fato, perdemos o desejo de controlar o resultado final. Posso dizer que foi um dos melhores e mais positivos anos da minha vida. Acredito que usei a pandemia como uma oportunidade.
Está confiante?
A gente usa a expressão “touch by touch” (toque após toque) em esgrima, ou seja, não dá para projetar o próximo passo do oponente. Por isso me inspiro nas artes marciais, e as Olimpíadas vão ser no Japão… Adoro a cultura oriental e, no momento, estou lendo os segredos de combate das lutas dos samurais e a vida do sabre. Já faço artes marciais (karatê e bioenergia oriental) há seis anos. Aprendi a conhecer e saber como usar a energia, o que é diferente do que usar o corpo físico – isso mudou meu jeito de lutar nos últimos anos.
Como você sente a responsabilidade de ser a número 4 do ranking mundial?
Ano passado (quando era a nº 2), ainda tinha um peso e precisei de uns meses para a ficha cair. Confesso que estou feliz porque as Olimpíadas não aconteceram no ano passado. Ganhar para o Brasil foi um choque porque, apesar de ter lutado para isso, tive que enfrentar a realidade brasileira da esgrima, o estresse no sentido da responsabilidade de ter que aproveitar o momento para divulgar a minha arte, mas, ao mesmo tempo, ter que me preparar para os Jogos que iam acontecer naquele mesmo ano. Comecei a passar muito tempo no Brasil e pouco tempo na França, onde eu tinha que treinar. Com o adiamento, consegui zerar o cronômetro e treinar mais para defender um título. Talvez ano passado não tivesse tanta disposição, mas agora me sinto como um animal dentro de uma jaula que precisa sair e lutar. Não é uma pressão, mas uma vontade. Assumo a minha responsabilidade de ser a número 4 e vou para esses jogos para lutar, não para me defender, e sim para atacar.
Quais suas principais concorrentes?
Posso ser a minha pior inimiga ou a melhor amiga, mas estou confiante. Somos 36 participantes, o que não é comparável a um mundial que tem, em média, 160 atletas. Mas existe todo um protocolo, um trabalho muito profundo de análise técnica, estratégica e emocional quanto às rivais. Sempre enxergo um combate como uma alquimia. Eu preciso dançar com a rival e, nessa dança, preciso encontrar uma saída para ganhar. Outra coisa que é fundamental é jogar com o coração. Acredito que é o coração que vai me fazer ganhar.
Esgrima no Brasil é um esporte de elite. Está nos seus planos fazer algo nesse sentido por aqui?
Isso foi uma das razões de eu mudar a minha nacionalidade para o Brasil. É um esporte que tem que ser muito desenvolvido e vai ser um desafio gigante, tanto pelo tamanho do país quanto pela mentalidade em popularizar um esporte de elite. Não morar no país também atrasa os planos. Mas vou começar a fazer algo assim que acabar as Olimpíadas, um longo processo. Meu objetivo é ser uma espécie de ícone da esgrima – é sabido que qualquer esporte só se populariza quando existe um ídolo. Sei que eu não era conhecida antes de ganhar o campeonato em 2019. No começo, fiquei estressada ao ver o quanto o processo de reconhecimento é lento, mas agora está tudo encaminhado, e sei que vou ganhar essa medalha. Terei a oportunidade de falar sobre o esporte e desenvolver isso no Brasil, não só para a elite como também para a popularização da esgrima.
Como são suas visitas ao Brasil? De que mais gosta?
Costumo ir ao Brasil quatro vezes por ano, mas tem um ano e meio que não vou. O que mais gosto é o amor dos brasileiros pela vida. Seria um sonho morar no Brasil, porque só o fato de representar o País já mudou a minha vida – as pessoas falam que estou mais sorridente, mais aberta, mais entusiasmada. O ideal seria juntar as duas culturas: o coração do brasileiro e a razão do europeu.
Além de atleta, você é modelo, estudou Filosofia e é diretora de arte… Daquele tipo “por que tanto pra uns”?
Me considero, principalmente, esgrimista; depois, diretora de arte. Modelar foi uma consequência do esporte para alguns projetos específicos. Estudar Filosofia foi muito útil para dar uma visão mais ampla das coisas e ter um olhar mais sensível para o ser humano. Tudo isso está no 5touches — o físico (com treinos funcionais e a dança das espadas), o mental (terapias, workshops e conferências), o gastronômico (de educação alimentar), o artístico (envolvendo artes plásticas, cinema, teatro e música) e o estético (moda e desing). Estou numa fase em que tudo aquilo que aprendo não tem uma finalidade de vitória, mas de ajudar os outros a conquistar seus sonhos. Tanto que a minha frase lema é “transforme em ouro tudo aquilo que você toca”. Essa é minha missão.
Você passa uma imagem de mulher forte…
No momento em que coloco a máscara, surge o lado guerreiro, o conquistador. No combate, apesar de ter uma estética bem feminina, dentro de mim tenho que trabalhar o lado animal, o lado guerreiro, o lado matador. Isso foi difícil porque sou muito sensível e quero o bem do outro. Na esgrima, se você não mata, morre. Tive que desenvolver esse estado de sobrevivência para entender que podemos matar o outro e, ainda assim, inspirar as pessoas. A mulher pode ser lutadora, mas tem que pensar na feminilidade. Entre meus projetos, está o lançamento de cinco máscaras com desenhos abstratos que representam estados emocionais que as pessoas incorporam no cotidiano.
Qual o seu maior sonho?
A um mês e meio das Olimpíadas, entrei na fase de finalização de um trabalho enorme. Acredito que um esgrimista é como um escultor – a obra perfeita é não quando você agrega, mas tira pedacinhos que estão sobrando. Estou na fase de limpar o meu jogo e fazer com que cada oportunidade, boa ou ruim, seja para manter o “estado samurai”, que é a capacidade de manter o próprio espírito imperturbável. Acredito que o maior segredo é o relaxamento corporal e espiritual; com isso, a vitória vai ser uma consequência. Sempre fui muito inspirada nos grandes mestres, em particular, Miyamoto Musashi, que disse a frase: “Somos mestres de nós mesmos.”
Um curta metragem lançado em 7 de junho para mostrar a visão de Nathalie da esgrima como esporte, arte, filosofia, dança e estilo de vida:
Ver essa foto no Instagram