Quem admira séries estrangeiras sobre nobreza, como “Downton Abbey” e “The Crown”, não sabe o que está perdendo em não conhecer os livro da historiadora e professora Mary Del Priore. Ganhadora dos prêmios Casa Grande & Senzala e dois Jabutis, a carioca já escreveu mais de 35 livros, que seguram o leitor como um bom filme. Parte do segredo desse sucesso está no fato de que Mary não se concentra nos chamados grandes feitos da história, mas tem uma especial atração em contar, nos mínimos detalhes, a história dos anônimos, dos pormenores, do que fazia o dia a dia do brasileiro e como ele pensava, vestia, se divertia e encarava o amor, desde os tempos de Cabral.
Dona de grande clareza na escrita, Mary, que é colaboradora de publicações nacionais e internacionais, mostra nos seus livros um passado com cores vivas: uma de suas principais pesquisas se refere à sexualidade e ao papel feminino ao longo do tempo. Isso tudo sem perder a conexão com o presente, sempre mantendo diálogo com as questões mais em evidência no nosso país.
Foto: Mateus Montoni
Como você vê, como historiadora, a polêmica das marchinhas de carnaval, agora tidas como politicamente incorretas?
“Pena as pessoas lerem o mulatismo como algo a ser silenciado. Isso, porque a história de nossa mestiçagem é desconhecida. Desde sempre o Brasil foi ‘o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos’, assim escreviam os cronistas do século XVIII. Pois desde então o mulato é o emblema da ascensão social de classes, antes escravas, mas, que no século XIX, já tinham formado advogados, médicos, políticos, escritores como Machado de Assis, engenheiros como os irmãos Rebouças e até os ricos e poderosos ‘barões de chocolate’, como o barão de Guaraciaba ou de Cotegipe.
No início do século XX, vamos ter um mulato na presidência da República: Nilo Peçanha, considerado um dos raros e bons dirigentes que o país já teve. E centenas de intelectuais importantes entre os quais destacaria Nina Rodrigues e Mário de Andrade. O Brasil tem, hoje, mais de 53% de sua população parda. Todos nós somos ‘brancos à brasileira’, como diz o imortal Alberto da Costa e Silva, ou seja, temos no fundo da gaveta o retrato de uma avó negra, mulata, parda, índia ou cafuza. Ser ‘branco’ no Brasil é uma fantasia: basta visitar a Dinamarca, a Suécia ou a Holanda para entender que a mestiçagem, ou o mulatismo, está na cara!”
Seu último livro “Do outro lado – a história do sobrenatural e do espiritismo” fala dessa relação forte no Brasil com o mundo invisível. Como se explica a ascensão das igrejas evangélicas nesse contexto?
“O Brasil é uma encruzilhada de religiões. Aqui todos podem ser católicos e espíritas, judeus e de umbanda, xintoístas e de candomblé etc. O sincretismo religioso se impôs, desde o início da colonização, com os padres jesuítas emprestando nomes da mitologia tupi para designar, por exemplo, Deus: virou Tupã. O protestantismo esteve entre nós, desde o século XIX, formando professores e escolas, ensinando a ler – o que o Estado brasileiro pouco fez.
Os evangélicos, por sua vez, cresceram onde o Estado não está presente e a igreja católica recuou. Seus templos são espaços de identidade e solidariedade. Ali, se encontra escuta no pastor, indicação de emprego e vaga no hospital, ajuda em momento de tristeza e morte. Para as populações que estão mergulhadas na pobreza e desigualdade, a igreja evangélica é sinônimo de orientação e ajuda. Maus pastores? Há gente ruim em toda a parte. Mas, há também, teólogos, historiadores, professores em todas as áreas que trabalham seriamente para sua igreja”.
Teria razões principais de o Brasil ser o país com maior número de espíritas do mundo?
“Acho que foi santo Inácio de Loyola quem disse: ‘para quem não acredita, nenhuma palavra basta. Para quem acredita, nenhuma palavra é necessária’. Acreditar num mundo após a morte, em reencarnações, na migração das almas, também faz parte de nossas tradições africanas, como mostrei no livro. Todas as crenças, portanto, se conjugam para explicar a força do espiritismo. Quando o kardecismo e as obras de Kardec chegam ao Brasil, são trazidos pela elite: advogados, médicos, políticos que apostavam que a caridade seria a melhor maneira de mudar os rumos de um país escravocrata e atrasado. Muitos deles eram abolicionistas, como Quintino Bocayuva. Além de priorizar a melhoria da humanidade, graças à orientação dos que estavam ‘do outro lado’, os textos de Kardec se uniam às descobertas da eletricidade, da telegrafia, da telefonia, fazendo crer que seria possível comunicar-se com os mortos através dos avanços da tecnologia”.
Em alguns de seus livros você fala da cobrança estética sobre o corpo da mulher, pressão que começou a ser exercida há poucas décadas. Isso deve crescer?
“O tema dos estereótipos vem sendo colocado em cheque pelas mudanças da sociedade e as conquistas das mulheres no campo das ideias. Alguém que ganhe sua própria vida, seja dona de sua sexualidade e de seu nariz, não admite mais caber em fórmulas prontas. Não é a toa que a palavra ‘estilo’ invadiu as revistas femininas. ‘Cada mulher tem o seu!’,martelam os editoriais”.
O surgimento de modelos plus size e uma Miss Canadá mais gordinha podem significar o início de uma reação contra essa padronização?
“Já é uma das respostas. Há outras, por exemplo: a noção de ‘conforto’ que se impõe sobre a de se estar impecável o tempo todo. Basta sair às ruas para ver que trainings, tênis, havaianas e lycra são a indumentária da carioca, independentemente de seu tamanho, formas ou idade. ‘Estar à vontade’ ou ‘usar o básico’, é outra forma de resistir e de adaptar a moda às necessidades e ao shape de cada uma”.
A reforma da Previdência vai mexer profundamente com o cotidiano da população mas, até agora, não provocou reações populares de massa. O cidadão brasileiro, afinal, tende a ser passivo, pacífico, ou isso é um mito?
“Um dos vários mitos…Reações a aumento de preços de alimentos, impostos desmesurados, arrochos, sempre houve desde a colonização. Até greve de ‘policiais’ conhecemos no século XVII, na Bahia. A reforma da Previdência não é uma escolha. É uma necessidade. Ela está sendo feita no mundo inteiro por uma única razão: a longevidade das populações. As pessoas vivem muito mais do que seus avós. O que recolhem, quando recolhem, é pouco para mantê-las. E pior: sabemos que milhares de empresários não pagam o INSS de seus funcionários, os sonegadores são legião e há segmentos que têm aposentadoria exorbitante. Essas deformações têm que ser corrigidas junto com a reforma da Previdência.
A nossa diferença é que, em países desenvolvidos, os cidadãos estão em melhor forma. O brasileiro está vivendo muito e sem saúde. Isso torna os encargos da Previdência mais pesados, ainda. Então, se não houver mais tempo de contribuição, teremos não só uma população de idosos, mas, de idosos doentes e desassistidos”.
Muitos pais se preocupam com o que acham ser uma novidade das adolescentes atuais, os namoros com amigas da mesma idade. Na época do Brasil Colônia, como você já apontou, relacionamentos entre meninas eram relativamente tolerados, assim como os casos de mulheres casadas que preferiam o amor de outras mulheres. Já foi mais fácil ser lésbica no Brasil?
“Era tolerado por ser resultado de uma visão machista do mundo. Explico: nas visitas da Inquisição ao Brasil houve, de fato, o caso de algumas ‘tríbades’, como eram chamadas. Mas os inquisidores lhes davam pouca importância, pois, para eles, sem o órgão masculino e a função reprodutora do mesmo, o que elas faziam era apenas uma brincadeira de criança, de meninas, justamente. Por isso as lésbicas não tinham penas muito pesadas.
Porém, nunca foi fácil ser lésbica no Brasil, mesmo entre gente educada e de alto nível. Veja-se o caso de Lota Macedo Soares, narrado com sensibilidade no filme de Bruno Barreto ‘Flores raras’. Até os anos 60 e 70, elas podiam ser espancadas pelos familiares, expulsas de casa e perder a guarda dos filhos. O movimento feminista e as ‘ações afirmativas’ de personalidades importantes que ‘saíram do armário’ foi fundamental para que elas começassem a ter uma vida amorosa e social normal”.
Quais as diferenças principais entre ser mulher no Brasil Colônia ou atualmente?
” Basicamente, o controle de sua sexualidade, adquirido graças à pílula anticoncepcional. No passado, a mulher, antes de ser escrava do marido ou do pai, era escrava do próprio corpo, pois não controlava as gestações, a maternidade. Vivia prisioneira da maternidade. Com a pílula, ela pode trabalhar, amar e ser feliz fazendo da família uma escolha. Uma opção. Não uma obrigação”.
Você acredita que a Operação Lava -Jato pode contribuir de verdade para uma prática política mais honesta – para uma historiadora, é uma evolução?
“É, sem dúvida, uma evolução e devemos torcer para que os criminosos tanto devolvam o dinheiro roubado como paguem a seus crimes na cadeia. Mas não será uma solução. A solução virá quando todos tivermos consciência, não só de nossos direitos, mas de nossos deveres como cidadãos. Estar dentro da lei, pagar impostos, termos um comportamento de respeito e tolerância pelo outro, votar com seriedade, e sobretudo, lutar por uma educação de boa qualidade que ajude os que tem menos informação a poder exercer seus direitos e deveres me parece obrigatório para a Lava-Jato vingar”.