Quando informei ao meu pai e à minha mãe que eu faria Biologia, a reação foi de felicidade, principalmente por parte de minha mãe, que via na profissão um abrigo seguro para seu filho temporão. Afinal, o que poderia acontecer ao “bom menino” trabalhando com a Biologia?
Meu pai, por sua vez, profeticamente me informava que eu estaria na “crista da onda”. Não sei bem de onde ele tirou aquela profecia, mas o fato é que ambos, além de dar apoio incondicional às pretensões profissionais do filho, não tinham a menor ideia do que eu iria fazer com um diploma de biólogo no Brasil — talvez seria professor, talvez pesquisador, talvez, talvez, mas nunca me informaram uma suposta preocupação a respeito disso.
Nunca, em hipótese alguma, imaginariam a confusão em que seu filho nascido e criado em Copacabana iria se meter num dos países mais perigosos para os profissionais sérios que lidam com o ambiente.
Seria cômico se não fosse trágico, mais esse destaque mundial de um país megadiverso acostumado a incendiar seus recursos naturais.
Pois bem, de lá para cá, passaram-se 40 anos.
Passei, sem maiores problemas, pelo curso de graduação, no qual, francamente, eu já me incomodava profundamente com os ecos da degradação que já chegavam ao meu conhecimento.
Aquele incômodo foi crescendo e exigindo de minha parte, como biólogo já formado, alguma atitude; afinal, as leis protegiam, e os delinquentes continuavam deitando e rolando.
Deixei de lado os anos de 1987 e 1988, que foram de pura diversão, e caí de cabeça no olho do furacão, já no final de 88.
Em 1989, percebi nos nervos como “funcionava” o Brasil. Ao defender os ecossistemas da baía de Ilha Grande, bati de frente com palmiteiros, extratores de areia, especuladores imobiliários, Judiciário, Executivo e Legislativo, que, muitas das vezes, lá estavam para legitimar o ilegitimável.
A resposta não demorou a vir, e os dois anos subsequentes tornaram o sonho de proteger os manguezais e demais ecossistemas da região um verdadeiro purgatório, suplício de quem, um ano antes, havia assistido ao assassinato do seringalista Chico Mendes pela televisão e agora era o próximo alvo, não nas florestas do bioma Amazônico, mas em pleno Rio de Janeiro, no bioma Mata Atlântica.
A cada nova ação de fiscalização, as ameaças telefônicas, as perseguições na Rodovia Rio-Santos se sucediam.
Finalmente me “exilei” na Alemanha, com o apoio da ONG local ASW, em junho de 1990, período em que eu havia sido marcado para tornar-me uma estatística. Felizmente, a ação da imprensa tornou o caso uma morte anunciada, pública no Brasil inteiro, fato que me deu sobrevida.
A sobrevida não durou muito, pois a fritura política em relação aos meus trabalhos já vinha sendo executada. Até que, em 1991, “bati em retirada”, visto que perder uma batalha não significava perder a guerra.
Contudo confesso que, àquela época, eu me senti derrotado, apesar dos milhões de metros quadrados de manguezais que pude salvar da sanha dos delinquentes ambientais locais.
Paralelamente, sem saber, ainda nos finais de semana desde 1989, ao retornar de Angra dos Reis, eu já iniciava uma nova batalha — esta em pleno coração da Zona Sul do Rio de Janeiro, o que seria conhecido atualmente como Manguezal da Lagoa.
Considerado-me bem-intencionado, mas maluco. Tive todo tipo de reação ao renaturalizar as margens da lagoa Rodrigo de Freitas com espécies vegetais exclusivas de manguezal.
Isso, sem nenhuma autorização, até porque entendia que, a partir do momento em que delinquentes obtinham licenças fraudulentas para aterrar manguezais, o que me obrigava a ter permissão para recuperar manguezais? Se a regra era a bagunça, então que prevalecesse a bagunça em favor dos manguezais.
De lá para cá, outubro de 1989, foram 4.500 mudas de mangue vermelho, branco e negro, trazidos no manguemóvel de meu querido pai, bem como por meio de outros meios de transporte, num verdadeiro êxodo de áreas em processo de degradação para as margens da Lagoa.
Passados 32 anos, inúmeras espécies usam os manguezais frondosos como moradia, ponto de alimentação e reprodução, mostrando que é possível renaturalizar e transformar ecossistemas degradados pela delinquência pública e privada em ambientes altamente produtivos, ambiental e economicamente.
O transporte era feito dos manguezais de Angra dos Reis para a Lagoa e desta para o sistema lagunar de Jacarepaguá e baía de Guanabara, nos trechos mais contaminados e degradados onde até então ninguém havia suposto recuperar o que havia sido degradado.
Estimo em 5 milhões de metros quadrados de manguezais recuperados e gerenciados nesses 33 anos de batalhas em defesa da zona costeira.
Não posso esquecer do projeto OLHOVERDE (monitoramento ambiental aéreo), que soma 25 anos no próximo mês de setembro. Fruto da necessidade inicialmente de entender e posteriormente combater os processos de degradação não só dos ecossistemas costeiros como também de suas bacias hidrográficas.
É um verdadeiro filme de terror e de obscenidades ambientais, onde, lá do alto, percebe-se que pouco tem valido o grande arsenal legal que protege os recursos naturais diante da voracidade da delinquência ambiental dentro e fora do poder público, seja por ação e principalmente omissão; afinal, por trás de todo processo de degradação, há claramente uma cadeia de delinquentes que se beneficiam do uso predatório dos recursos naturais.
Nesse resumo, despertado pelo “Globo Repórter“, que foi ao ar nessa sexta (20/08), mostrando ao País os esforços de recuperação dos manguezais de Gramacho, além das vitórias e dos milhões de metros quadrados recuperados junto de sua biodiversidade, resta um sabor amargo ao constatar que, nessas três décadas, não tive conhecimento algum de nenhum delinquente ambiental “vip” devidamente penalizado com cadeia.
É quase uma certeza cristalina de que grandes delinquentes, principalmente os “vips”, têm assegurado o amplo direito de degradar. Parece sempre haver, nos meandros jurídicos de Pindorama, escapatórias jurídicas que ponham os autores das degradações longe da cadeia, recaindo geralmente algum custo dos extermínios executados, singelamente, para as pessoas jurídicas, como se essas tivessem vontade própria.
Um dia, isso deverá mudar. Quando? Não sei. Apenas sei que faço o trabalho para o qual fui preparado, tentando evitar as consequências que estão, ano após ano, materializando-se, independentemente do que eu ou você acreditemos.
Acordamos o Kraken (um terrível monstro marinho da mitologia nórdica capaz de afundar embarcações e devorar suas tripulações na), e ele está vindo nos buscar!
Resta saber se seremos espertos o suficiente para reduzir as consequências de nossas irresponsabilidades com o planeta que nos acolheu.
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