Morei em Moscou por quase cinco anos. Mikhail Gorbachev estava em pleno processo de implementação das linhas mestras do que seria considerado o movimento de abertura ou transição no regime soviético. Considerando que o Muro de Berlim fora derrubado em novembro de 1989, acabando com a Cortina de Ferro, não foi difícil ficar entusiasmada pelo fato de saber que iria morar em Moscou, ao acompanhar meu marido, Sebastião do Rego Barros, naquele final de ano, como embaixador do Brasil na União Soviética.
Acostumada quando jovem, na redação de jornal, a observar o que acontecia no mundo, me percebia ali, naquele momento e nos que se seguiram, como alguém privilegiado ao entrar no que eu mesma chamava de um “verdadeiro laboratório social”. Lembro-me, também, que foi, com grande perplexidade, que vi, em cima do Kremlin, na noite moscovita, a bandeira vermelha com a foice e o martelo ser rapidamente trocada pela bandeira azul, branca e vermelha que tinha sido a do Império russo, em uma cobertura especial da recém-instalada CNN na capital russa, em dezembro de 1991, quando foi selada a desintegração da União Soviética.
A história da Rússia sempre foi vasta e complexa, como seu próprio território, principalmente pela pergunta que se impunha: é ela Ocidente ou Oriente? Essa é uma questão que se colocou desde os primórdios de sua história, explicada não só pelo tamanho de seu território no mapa-múndi, mas também pelos questionamentos levantados por pensadores e governantes do país.
Lembro-me também de um antigo provérbio segundo o qual Kiev, capital da Ucrânia, era a mãe da Rússia, São Petersburgo a sua cabeça e Moscou, o seu coração.
Kiev é o resultado da incursão constante de povos do Norte, os vikings, que desceram os rios e, misturados com o núcleo que seria depois chamado de eslavo, formaram, ao longo do tempo, a dinastia dos rurik, governantes da Rússia nos primeiros séculos de sua formação. Por outro lado, nos séculos X e XI, Kiev se torna a vila santa, onde floresceu a religião ortodoxa, importada de Bizâncio. São Petersburgo, fundada em 1703 por Pedro I, sempre foi considerada uma “janela para o Ocidente”. Mas é em Moscou que se aglutina o amálgama e o ponto de encontro das raças, das etnias que se juntaram todas sob o jugo do Império russo e, depois, do Império soviético.
Seria interessante observar, nessa marcha histórica e civilizatória e de forma bastante resumida, que, apesar de movimentos de distanciamento ou de confluência nas questões geopolíticas, a civilização russa é parte integrante da formação da cultura ocidental. No Brasil, cada vez mais, leem-se os russos. Continuamos a ler e reler “Guerra e Paz” ou “Ana Karenina”, de Leon Tolstói, “Crime e Castigo” ou os “Irmãos Karamasov”, de Fiódor Dostoiévski, e “Almas Mortas”, de Nicolai Gogol. Assistimos também a constantes montagens das peças de Anton Tchecov. Em salas de concerto, Piotr I Tchaicovsky, Serguei Rachmaninoff, Serguei Prokofiev, Igor Stravinsky são interpretados pelo mundo afora, assim como Anna Pavlova, Maia Plisetskaya, Rudolf Nureyev e Mikhail Baryshnikov, representam a glória do Ballet Russo, sem falar no cinema de Serguei Eisentein e Andrei Tarkovski.
Neste momento, vivo cercada de poetas russos, como Anna Akhmatova, Marina Tsvietáieva e Wladimir Maiakóvski; enfim, pela literatura, pela música, pelas artes em geral, vários caminhos sempre chegaram à Rússia. A Rússia de hoje não é a que conheci, tampouco o mundo; muitos caminhos foram traçados de lá para cá. Mudou a Rússia ou mudei eu? Mas fosse eu um diplomata de plantão, terminaria essas vagas impressões com as palavras de Leon Tolstói: “Não há soldados mais valorosos que estes dois — o Tempo e a Paciência”.
Tite de Lamare é carioca, tem dois filhos e quatro netos e mora no Rio. Viveu em Moscou, de janeiro de 1990 a março de 1995, com o marido, o então embaixador Sebastião do Rêgo Barros. Em 1997, publicou o livro “Caminhos da Eterna Rússia” pela editora Expressão e Cultura e, em 2021, o livro de poemas “O que não cabe na boca” pela editora 7Letras.