Uma das piadas que eu escutava quando era menina, na Bahia, é que Caymmi vivia fora de lá exatamente para manter o espírito nostálgico que o fez criar canções lindíssimas, como “Saudade da Bahia”. Vivo fora da Bahia há duas décadas, e apesar de frequentá-la a cada dois, três meses, sei bem como é ter esse sentimento, que está muito mais relacionado a um tempo passado do que à distância geográfica. Até a época em que fui jovem repórter em jornais baianos, a Bahia estava repleta de gente especialíssima, que pude conhecer e hoje já se foi: Jorge Amado, Carybé, Calasans Neto, Mário Cravo (pai), Pierre Verger. O próprio Caymmi.
Sete anos atrás, quando comecei a fazer a biografia de Jorge Amado — livro que chegou às livrarias agora, pela editora Todavia –, pude dar um mergulho profundo nessa Bahia, que conhecia em parte e, em parte, ainda estava para ser mais explorada. Fiz muita pesquisa de arquivo na Bahia, onde está o acervo do autor de Gabriela Cravo e Canela, e também tive de encontrar muitos dos que conviveram com ele e ainda podiam me dar entrevistas. Auta Rosa, viúva de Calasans Neto, que partiu há menos de um mês, foi uma das minhas entusiasmadas anfitriãs. Na casa onde viviam em Itapuã, fui recebida com bebidas e quitutes, para conversas longas e engraçadas. Confesso que há trechos para sempre impublicáveis, tal a picardia envolvendo terceiros. Seu vizinho era o pintor Santi Scaldaferri; mais discreto que ela, guardava suas surpresas em casa. Na despedida, posou para um registro único, segurando um imenso facão que guardara das filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol, do amigo Glauber Rocha, no qual fizera uma ponta. Santi fez para mim a expressão de Corisco (vivido pelo ator Othon Bastos) no cartaz do filme. Outro que ainda estava vivo e me recebeu para uma das visitas mais intensas da minha vida foi Mário Cravo, o “Exu iluminado”, como o apelidara Jorge certa vez. Em seu ateliê no Parque Metropolitano de Pituaçu, recebia carregamentos de sucata para fazer suas esculturas, e seu olhar deslumbrado com aquele material bruto que chegava me fez pensar que via além deste mundo.
Enquanto pesquisava e escrevia nesses sete anos, fui assistindo à partida de meus entrevistados que marcaram a história artística e cultural da Bahia, alguns de modo muito surpreendente. Tão jovial e elegante, a poeta Myriam Fraga, que estava à frente da Fundação Casa de Jorge Amado desde sua criação, foi uma das que se foram de repente. Na nossa penúltima conversa, ao telefone, ela comentou: “Queria tanto estar viva para ver seu livro lançado.” Eu me espantei e fiz uma brincadeira para quebrar o clima: disse-lhe que era o maior “bullying” que eu tinha sofrido desde que assumira o desafio de retratar o autor. Nossa última conversa aconteceria um ou dois meses depois, já ao vivo, quando ela voltava do hospital, após se recuperar de uma pneumonia. Temi que ela tivesse mesmo era adivinhado o rumo dos acontecimentos. E foi. Morreu pouco depois.
Tinha sido no escritório de Myriam, de frente para o Largo do Pelourinho, que vi o quadro em que Carybé desenhou Nossa Senhora da Viração (dos Ventos), a santa que só existe na Bahia e é a garantidora dessa brisa fresca, interminável, que caracteriza tanto a vida de Salvador. Em férias esses dias na Bahia, pós-lançamento da biografia, assisti à despedida de Mãe Stella de Oxóssi, outra de minhas ilustres entrevistadas. Mãe Stella tinha sido a responsável pelo rito de partida de Jorge, que era obá de Xangô de seu terreiro, o Ilê Axé Opó Afonjá. Quando o escritor morreu, ela foi convocada a ir até o hospital para cumprir as “obrigações” necessárias, antes que ele fosse colocado no caixão. O surpreendente agora é que, por uma desavença entre sua companheira e o terreiro, por um triz, a venerável sacerdotiza era, ela mesma, enterrada sem passar pelas “obrigações”. A tempo, uma decisão judicial resolveu que a tradição fosse mantida, algo visto pelos seus fiéis como imprescindível para o futuro do axé.
Não vai ter jeito — a saudade da Bahia não vai passar, ainda mais com o desaparecimento de tantas figuras e de toda a mística de seu entorno. O que nos vai salvar são as páginas, as esculturas e quadros, a música que nos deixaram para sempre.
Joselia Aguiar é jornalista e escritora, por duas vezes curadora da Flip. Depois de sete anos de pesquisa, ela lançou “Jorge Amado: uma biografia” (Editora Todavia), em todas as livrarias.
Foto: José Terra