Filha de mãe solo, lembro que idealizei o casamento desde muito cedo e projetei o amor romântico como uma das finalidades da vida. Escolher e ser escolhida, cuidar dos dias dentro de uma relação com zelo, entrega, companheirismo, criatividade, surpresas e mimos – de preferência até o sempre – compunham o meu repertório sonhado.
Cada vez que eu encontrava um casal que estava há um tempo juntos, corria, desde jovenzinha, até eles para saber mais sobre “os segredos da paixão”, ingênua e deslumbrada pelo que eu considerava ser uma das maiores sortes, a química essencial, um dos sinônimos ou par perfeito do amor.
Quando a resposta dos casais chegava, uma decepção recorrente descia pela minha garganta, e eu me sentia insegura e desconfortável. “Paixão a gente sentiu jovem; o sentimento se modifica, hoje sentimos amor um pelo outro.” Ou então, “o melhor do casamento são os nossos filhos”, “vivemos mais como irmãos, administramos a família, temos respeito um pelo o outro, paixão dá e passa”.
O semblante morno e resignado nos olhos desses homens e mulheres me atemorizava. Insatisfeita com o que ouvia, jurava para mim mesma que, quando chegasse a minha vez de amar, eu faria de tudo para não me sentir apagada ou preterida em uma relação quando me tornasse adulta.
Para minha angústia e fúria, praticamente todos os meus relacionamentos sérios terminaram (o que inclui, também, o meu primeiro casamento) porque descobri infidelidades. Ao meu redor, os casos dramáticos de traições conjugais envenenavam histórias da nossa família, das amigas próximas, dos enredos em novelas, livros, filmes (impregnando também os bastidores da vida dos artistas que eu admirava). O adultério se mostrava como um “continuum” — perseguido, mal falado, motivo de tormentas e brigas, mas, ainda assim, praticamente onipresente, com supostas exceções pontuais.
Quando conheci o Johan – marido sueco que encontrei em um site de relacionamentos e com quem estou há 12 anos, em Estocolmo, e temos dois filhos -, a fidelidade se apresentava como condição para o amor, acordo inegociável. Machucada por sucessivas traições, desde muito cedo, deixei claro para ele que comigo teria que ser “tudo ou nada”, eu não toleraria deslizes. Nosso estado de apaixonamento era notório e deslumbrante. Escrevi até um livro sobre a história de amor que nos atravessava, unindo Rio e Estocolmo, culturas e línguas tão distintas, quase uma fábula, o “Encontros de neve e sol” (e-galáxia, 2017).
Por mais exuberante que fosse o nosso amor e encantamento um pelo outro, depois do nascimento dos filhos, começou a ficar claro que algo de novo estava vindo ao nosso encontro. A maternidade, a paternidade e a convivência cotidiana pareciam intimidar e postergar Eros, antes explosivo e arrebatador, para uma versão domesticada e familiar de nós mesmos. A rotina anestesiava o desejo. Para nós dois, entretanto, era esse o preço a ser pago para o amadurecimento e projeto amoroso de família.
Em uma das nossas viagens de verão, uma inesquecível road trip pela Sicília, com os filhos pequenos no carro, ouvimos por acaso o ted talk da psicoterapeuta belga Esther Perel. No episódio, ela contava com maestria como a tarefa de conciliar domesticidade e erotismo, especialmente em relacionamentos de longa duração, requer distância, individualidade, mistério e uma dose de inteligência erótica, quase uma investigacão sobre as poéticas do sexo. A necessidade de segurança em uma relação seria tão importante quanto se sentir instigado por novidades, e caberia aos casais encontrar formas de integrar tais emoções, afastando a previsibilidade e o tédio. “Quanto de insegurança você consegue suportar?”, ela provocava.
Tanto eu quanto Johan ficamos hipnotizados com o que ouvíamos porque o que Esther Perel dizia apontava para o que não tínhamos coragem de conversar abertamente – mas que era impossível de não reconhecer. Estávamos nos transformando naquele casal que se ama, se respeita, aprecia a companhia e o projeto de família, mas com a vida sexual amornando. Ciumenta como era, temi que meu marido, ao ouvir aquelas palavras tão bem espelhadas, ficasse instigado a querer provar novos sabores; depois, ele me contou que também se sentiu receoso. A parte boa foi a de termos conseguido expressar nosso embaraço ao final do podcast. Falamos sobre o tema, sorrimos de nervoso e prosseguimos a viagem, mas uma semente de liberdade e ampliação do conceito de amor tinha sido plantada, e acho que sabíamos disso.
Anos depois, quando comecei a trilogia erótica “Emma e o Sexo”, tive a ideia de criar uma das personagens vivendo em um relacionamento aberto, a “cam girl” (garota da câmera) Juliana. Como parte do estudo para pensar o enredo, mergulhei em bibliografia específica sobre sexualidade, erotismo, libido, desejo, fantasias, empoderamento feminino e história do casamento. Retomei as falas da Esther Perel, devorei seus livros. Ao entrar nessa seara, descobri o trabalho fantástico da Regina Navarro Lins, uma pedra preciosa. Com o seu jeito despojado, direto e alimentado por argumentos afiados sobre os mitos do amor romântico, intuí que aquele seria um caminho sem volta: a monogamia como modelo compulsório e único de amor perdia o sentido e valor aos meus olhos. Passei a conversar cada vez mais com Johan sobre os aprendizados das novas formas de amar, e trocamos várias leituras sobre o assunto.
Foi assim que, ao completarmos 10 anos de casados, propus a ele, no café da manhã, um presente diferente. “Vamos abrir o nosso casamento?”, perguntei. Johan sorriu, interpretando como brincadeira. “Você está falando sério?”, e confirmei com um beijo. Ele abriu um champanhe na hora e brindamos a nova fase. “Daqui a um ano renovamos os votos. E temos direito de veto a qualquer momento, qualquer coisa a gente grita”, e assim rascunhávamos com bom humor o que seria o início dos novos acordos colocados na conta da escrita da trilogia erótica “Emma”.
Dois anos se passaram desde a abertura, e a sensação que temos é de agradecimento diário pelo percurso escolhido, um reencantamento. Retomar aspectos da individualidade e desejos de cada um (para dentro e fora da nossa relação) faz parte do processo de entendermos que amar não precisa ser sobre posse, exclusividade e ciúmes, mas um convite à apreciação e autonomia, tanto a de si mesmo, quanto a de quem se ama.
Até agora, Johan aprecia a possibilidade de variedade sexual ocasional, e eu, com a de relacionamentos afetivos paralelos (nada impede que as preferências se alterem ao longo do tempo). Se usarmos as distinções feitas no campo das não monogamias consensuais, poderíamos dizer que ele estaria mais para “casamento aberto” e eu para “poliamorosa”. Essa diversidade nos orgulha e engrandece, até porque, para além da monogamia compulsória, as possibilidades são muitas, variando, por exemplo, entre swing, relacionamento aberto, poliamor (e seus muitos arranjos), não monogamia política e anarquia relacional. A liberdade de escolher o formato que melhor se aconchega com os nossos desejos é de um valor inestimável. Essa é uma escolha que precisa ser revisitada regularmente, recriada, afinal, somos os mesmos com o passar das fases das luas?
Muito me alegra saber que hoje, depois da publicação dos meus livros eróticos “Emma e o Sexo” (e-galáxia, 2017) e “Emma e o Poliamor” (Patuá, 2022), eu possa estar contribuindo para que o universo da ficção também desconstrua normas sociais tradicionais relacionadas ao amor e ao sexo. Ao retratar personagens envolvidos em relações não monogâmicas consensuais, acredito firmemente que a literatura possa ajudar a desconstruir crenças arraigadas sobre relacionamentos e promover uma visão mais inclusiva e progressista do amor e da sexualidade, instigar a curiosidade, trazer novas perguntas. Uma representação diversificada da realidade das relações humanas nos traz respiro e acolhimento.
“Emma” é uma trilogia erótica que espero possa contribuir para que nós pensemos a comunicação, o consentimento, o gerenciamento de emoções e o equilíbrio entre múltiplos relacionamentos como intenções contemporâneas de autoconhecimento e novas descobertas de si, incluindo o que temos de desejos intimos, eróticos e idílicos de amor.
O retorno dos leitores está sendo tão fantástico que decidi me aprofundar no assunto e buscar formação profissional na área da Sexologia. Hoje estudo para conseguir o título de Certified Sex Coach pela instituição norte-americana Sex Coach U, que foi fundada por Patti Britton, uma renomada especialista em sexualidade, considerada a mãe do Sex Coaching!
É muito importante que mulheres escrevam literatura erótica de qualidade. No meu caso, falo abertamente sobre os livros e também sobre as minhas experiências não monogâmicas, com a intenção de promover uma compreensão mais precisa e inclusiva da sexualidade feminina, desafiar normas de gênero restritivas, empoderar as mulheres a se expressarem livremente e contribuir para uma sociedade mais inclusiva e tolerante em relação à diversidade sexual e formas de amar. Lembro que, quando saiu um depoimento meu num jornal, no ano passado, recebi mais de 2.500 comentários de ódio; respondi a quase todos com empatia e leveza.
A partir do momento em que os bastidores da monogamia compulsória e a do amor romântico são dissecados, deixa de ser árduo defini-los como a única forma válida e valorizada de se amar – um universo de possibilidades se abre. O que posso deixar para quem nos lê agora é um convite para esse oceano.
Te espero nos meus livros e nas sessões de “Conversas sobre a Sexualidade”. Estou oferecendo esses encontros individuais online para que inquietações, curiosidades e dúvidas em relação à sua sexualidade — especialmente baixa e/ou discrepância de libido, previsibilidade no script sexual, desejo e conexão emocional, transição para não monogamia consensual e fantasias eróticas — possam ser ouvidas atentamente em um espaço intimista e acolhedor.
Foto: Andrea Belluso/Divulgação
Ilana Eleá é carioca, doutora em Educação pela PUC-Rio e mora na Suécia desde 2011. Autora dos livros “Encontros de neve e sol” (e-galáxia, 2017), “Poemas Acesos”, (Patuá, 2020), “Emma e o Sexo” (e-galáxia, 2021) e “Fio de corte” – escrito com Lucelena Ferreira e Ângela Brandão (7letras, 2022). “Emma e o poliamor” é o segundo volume da sua trilogia erótica “Emma”. Atualmente faz cursos na área de Sexologia nas universidades suecas de Malmö, Gotemburgo e Estocolmo.
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