Meu pai, João Pinheiro Neto, era advogado e jornalista, com raízes na política mineira tradicional, ligada ao PSD de JK, mas acabou se aproximando do trabalhismo de João Goulart através do seu querido amigo Samuel Wainer. Foi ministro do Trabalho e Previdência Social aos 33 anos (1961-1962); em seguida, ministro da Reforma Agrária (1963-1964).
JPN mantinha silêncio sobre sua participação no governo Jango, talvez por medo, penso hoje. Os “anos de chumbo” eram implacáveis: todos que tiveram alguma participação no governo anterior eram perseguidos e vigiados. Seus passaportes foram confiscados, não podiam deixar o País.
Na minha infância, estudei em um colégio de classe média alta, o Padre Antônio Vieira, onde os alunos eram tratados pelo sobrenome. Sempre notei um certo desprezo dos professores quando identificavam de quem eu era filho. O mesmo acontecia nas festas de aniversário: era muito usual os pais perguntarem a filiação dos coleguinhas; sentia que a minha nunca trazia grande entusiasmo. Isso me deixava curioso já que, nessa época, eu já tinha ideia da participação do meu pai na vida pública. O que será que esse homem fez? Me perguntava.
Já adulto, descubro que minha mãe guardara, num armário do escritório dele, um verdadeiro arquivo pessoal da sua passagem pelo governo Jango. Eram recortes de jornal, vários de primeira página, colados em álbuns de fotografia, um verdadeiro acervo público.
Sempre que os visitava, ia direto ao armário secreto. Lá descobri quem era meu pai: um homem que desafiou as regras e padrões da classe média alta em que se inseria para defender os direitos sociais de trabalhadores pobres no campo. Era dele o decreto de desapropriação de latifúndios improdutivos às margens de ferrovias e rodovias, que fora assinado por Jango no fatídico Comício da Central dia 13 de março de 1964.
Cassado e preso com o golpe de 64, foi desprezado tanto pelos ricos, que o enxergaram como traidor, quanto pela esquerda, que não o aceitava pelas ideias independentes. Assim viveu em um exílio no próprio Brasil. Em 2006, JPN morre, e resolvo abrir a caixa de pandora — conheci o meu pai depois que ele morreu, fazendo o documentário.
Daí o documentário, a busca por uma reparação. Sua história foi de extrema coragem e idealismo: estava do lado certo da história, pagou um preço altíssimo; por isso, achei que merecia ser compartilhado.
Reproduzo aqui, na íntegra, uma carta do meu pai, da Fortaleza de Santa Cruz, em Niterói:
“Leda, muito querida: escrevo-lhe hoje, segunda-feira, dia 4. Um mês de separação da família. Há 31 dias afastado de tudo e de todos, a não ser nos rápidos momentos de suas visitas. Mas estou bem, minha querida. Não dê crédito aos boatos malévolos de que estou doente, nervoso, etc. Alimento-me bem. Quando o sol se anima, faço exercício ao ar livre. (…) Leio muito. Deus, que nesse mês negou-me tanto, não me negou os livros.
O que me preocupa é você, que achei mais magra, e a mamãe, que sei preocupada. Tranquilizem-se. Estou bem.
Tinha tudo para ser irresponsável. Frequentador de festinhas alegres. Gozando da vida as doces amenidades que a posição social e o dinheiro nunca me negaram. Fiz-me às tormentas da vida pública. Mais por destino que por opção. Achei que, sendo um privilegiado pelo nascimento, pelo nome da família e pelos recursos materiais que não me faltaram, deveria dar um pouco do que muito recebera (…).
Sou professor da Fundação Getúlio Vargas; viajo à Europa, desde os 20 e poucos anos. Jornalista de algum êxito. Advogado. Ministro de Estado com 33 anos e, aos 34, dirigente de uma autarquia de importância da SUPRA. Como haveria de querer condenar tudo o que aí está, assumindo atitudes extremistas ou subversivas para com uma organização social que não me negara nada? Que, ao contrário, dera-me tudo. Apenas queria aperfeiçoá-la. Fazê-la para os outros tão magnânima o quanto estava sendo para mim. Só isso. Nada mais.
Sou um conservador, no fundo. Apenas, como dizia, é preciso podar o mal para conservar o bem. Não estaria submetendo a família a esses sofrimentos. Não me estaria, como agora, privando de tudo e de todos se tivesse feito o que todos ou quase todos os moços na minha posição fazem. Gastar o dinheiro dos pais, jogar golfe, viver sossegado, cruzar os braços e esperar que outros façam alguma coisa por nós.
Para mim, chega. Vou viver para você e os garotos. Manso, sossegado, com tristes recordações de tudo isso. Dos sucessos efêmeros, das honrarias que nunca procurei e nunca me seduziram; das incompreensões, das dores e das penas que passam mas não se apagam. (…) Coma melhor, minha filha. Achei-a magra. (…) Escreva-me dando notícias. Sempre que puder, venha. A sua presença reconforta e estimula. Aguardo-a esta semana.”
O documentário foi patrocinado pela Prefeitura de Niterói, berço do trabalhismo e do Janguismo. Recebeu o apoio pessoal do prefeito Axel Grael e dos secretários Rodrigo Neves e André Diniz. A direção e roteiro são da Bárbara Goulart (neta de João Goulart) e a fotografia, de Caio Bortolotti. A distribuição será feita pela Downtown Filmes, de Bruno Wainer.
Henrique João Pinheiro é economista, há 15 anos morando em Miami. É sócio de uma “Family Office“ empresa que administra recursos de investidores estrangeiros nos EUA. O documentário “Terra Revolta — João Pinheiro Neto e a Reforma Agrária” será lançado em Niterói, em abril de 2024, quando completa 60 anos o Golpe Militar de 1964.