Eu, menino franzino, de notas médias em todo o percurso escolar, de São Gonçalo, filho de pais imigrantes portugueses, fugidos da pobreza e da guerra, semianalfabetos, com o pai dono de um boteco e a mãe costureira e que tinha vendido laranja em banquinha… consegui não só tornar a MCF Consultoria, minha empresa fundada há 18 anos, uma referência mas também mantê-la como a principal ao longo de todos esse tempo. Minha inquietação profissional me acompanha desde muito cedo.
Como eu disse antes, sou de uma família de perfil rígido e que apenas entendia o trabalho e a educação como ferramentas essenciais de oportunidades. Eu tinha horário de estudar, de brincar e de trabalhar. Aos 9 anos, já trabalhava com meu pai, exemplo puro de superação profissional. Mesmo não tendo sequer o curso primário, lia cinco jornais por dia. Falava e opinava sobre tudo. Lidava com o prefeito da cidade, desde o gerente do banco (nessa época, essa função era considerada quase uma celebridade) ao mendigo e ao cachaceiro. Com todos, tinha conversa.
Ao longo dos anos, fui percebendo que essa característica tinha se tornado DNA e me transformado; já minha mãe, irredutível na correção, na moral, na ética e, sempre, nos estudos. Não faltou a uma reunião durante todo o meu período escolar; nem às minhas, nem às das minhas irmãs (tenho três). Lembro, até hoje, que ela sempre dizia que, mesmo que estivéssemos certos, se algum professor falasse do nosso comportamento, a razão seria do professor, e aí, só Deus sabia o que aconteceria. Valores que formam, educam, solidificam. Queria um autorama, mas não tive; uma bicicleta, mas não tive. Mas quis estudar, fazer datilografia… Para tudo isso, dava-se um jeito.
Comecei a estudar inglês aos 10 anos; isso abriria a janela da minha vida profissional. Dei aula particular em casa, para ter dinheiro para comprar gibis e revistas. Olha a leitura aqui novamente! Reconheço os gibis como os responsáveis pela minha competência de leitura e escrita. Trabalhei como office-boy no Centro do Rio, para a Senge Engenharia, e como recepcionista no primeiro apart hotel do Rio, no meio do Baixo Leblon, quando a Pizzaria Guanabara era o ponto mais incrível da cidade.
E eu, sendo de São Gonçalo, não entendia nada daquilo, ou por que tantos artistas da época estavam sempre por ali: Cazuza, Luiz Fernando Guimarães, Diogo Vilela… Fiz faculdade de Administração na Cândido Mendes, no Centro; até hoje, digo que não era possível se formar na Cândido de Ipanema, ao lado da praia e do Chaika, meu lugar preferido…. Da recepção do Leblon Inn, iniciei como estagiário de administração da maior empresa de Tecnologia da Informação — outsourcing do mundo. E claro que eu nem sequer sabia o que era.
Essa é uma história longa, que envolve eu expulsando um hóspede do hotel, e esse mesmo hóspede, meses depois, me indicando para uma vaga de estágio. Mas não foi assim romântica essa história… Vou contá-la em detalhes no terceiro livro, que sairá em 2021. Ao sair da EDS, depois de oito anos, tirei um ano sabático. Visitei e conheci 18 países da Europa, e esse foi o mesmo ano do falecimento do meu pai e da pressão sobre dar ou não continuidade ao seu boteco, ou seguir a vida. Parti para São Paulo. Viajei por mais de 15 países; no retorno, depois de um tempo de seleções, fui contratado para a vaga de Diretor de Marketing da Louis Vuitton, América do Sul.
Eu, de São Gonçalo, tendo tido a chance de morar na conservadora Texas, trabalhando para uma marca de luxo que eu nem sabia que existia… Foi o período mais desafiador da minha vida — ter essa atividade em países como o Brasil, que saía de hiperinflação; Chile, do tamanho de uma ervilha, e Argentina, que era o destino mais importante da região. Depois ocupei a direção da América Latina e Caribe, criada para me absorver. Foram 12 países sob minha gestão.
Crescemos, nos fizemos presentes, chamamos a atenção. E da direção-geral de Marketing, Comunicação & Novos negócios, fui levado à presidência da Louis Vuitton Brasil, aos 30 anos. Até hoje, sigo sendo o executivo mais jovem da LVMH — maior grupo de luxo do mundo, a ter assumido a função de presidente. Aos 31 anos, estava entre os 250 líderes mais eficientes da LVMH mundial. Mesmo com essa trajetória, decidi sair — história longa, mas que foi fácil. Sempre foi fácil eu me desligar das minhas posições profissionais com títulos. Quem estava em volta sofria, mas eu, não.
No momento em que o prazer não era mais o combustível principal, desliguei-me das empresas. Não saí da Louis Vuitton para me tornar empresário, e não fui um visionário. Planejei seis meses sabáticos novamente, começando por Fernando de Noronha; mas abortei porque, 12 dias depois do meu desligamento, o Governo Federal (à época, o Presidente era Fernando Henrique) me convidou para coordenar um projeto de marca Brasil na França. A MCF, minha empresa, foi aberta para emitir a nota fiscal, e eu receber o valor desse projeto. Agora, quase duas décadas passadas, a ABRAEL — Associação das Marcas de Luxo, criada por mim, já está no décimo primeiro ano, e a Bento Store, minha outra aventura empresarial, já no caminho do sétimo ano.
Eu me tornei empreendedor, empresário e gestor de pessoas. Talvez, nas pessoas, o mais forte atributo que consegui desenvolver seja me doar por completo. Fui convidado muitas vezes a escrever um livro, mas não quis. Queria ser reconhecido pela minha capacidade e competência. Trabalho muito, mas, agora, com reconhecimento profissional consolidado, julguei ser oportuno lançar o primeiro livro, que é parte de um contrato para três com a DVS.
O primeiro, com uma compilação de artigos, reflexões, textos, entrevistas sobre a gestão do luxo; o segundo, em 2020, sobre as nossas metodologias de gestão, e o terceiro, em 2021, sobre a minha trajetória pessoal. Lembro-me de um diretor na EDS: ele dizia que, sendo eu de São Gonçalo e sem uma educação de ponta, não conseguiria muito. Tive que driblar a ‘síndrome do impostor’ o tempo todo: mostrar mais, fazer mais, entregar mais. Tive que me superar em todo o meu caminho profissional.
Acredito que somos educados pelo belo, por marcas e empresas, nossas vivências e experiências. Gostamos de subir degraus, saborear novos sabores. E, uma vez expostos a essas possibilidades, não regredimos; daí o título “O paladar não retrocede”.
Carlos Ferreirinha, carioca de São Gonçalo, vivendo em São Paulo há 27 anos: triplo ariano, inquieto, incomodado, gestor, empreendedor, acaba de lançar o livro “O paladar não retrocede” (Editora DVS).