O depoimento transcrito aqui faz parte do último capítulo do livro “Operação Condor”, que escrevi em parceria com o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony e recém chegou às livrarias. Na verdade, Cony não viu esse trabalho publicado nem chegou a ler o texto final. Ele partiu em janeiro de 2018, durante o processo de escrita. Não foi uma tarefa fácil concluir sozinha a jornada que iniciamos juntos, em 2001, quando começamos a pesquisar sobre as mortes dos ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubtischek e do ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda, os três políticos que pensaram a Frente Ampla, numa tentativa de tirar o Brasil da Ditadura, instaurada pelo Golpe Militar de 1964.
Os três morreram em circunstâncias suspeitas, num período de nove meses, entre agosto de 1976 e maio de 1977, numa época em que opositores às ditaduras em países do Cone Sul estavam sendo eliminados pela Operação Condor. Essa pesquisa resultou no livro “O Beijo da Morte”, que publicamos em 2003. Dez anos depois, quando a Comissão Nacional da Verdade pediu a exumação dos restos mortais de Goulart, Cony e eu decidimos voltar ao tema, surgindo assim uma nova obra: “Operação Condor”.
Já o texto “Depois do fim”, que fecha o livro, nasceu da minha necessidade de dividir com o leitor o que se passava comigo, sobretudo no meu coração, enquanto eu caminhava sem a companhia do Cony. Muito tempo se passou desde que o Cony e eu decidimos reeditar “O Beijo da Morte” até a conclusão desta versão ampliada (“Operação Condor”). Isso falando do tempo do relógio da gente, em que eu poderia enumerar uma série de acontecimentos que, independentemente da nossa vontade, foram fazendo com que protelássemos a finalização do projeto.
E esse mesmo tempo, que passa indiferente aos nossos destinos, amores e compromissos, às nossas dores, escolhas e obrigações, mais uma vez inexorável, determinou a partida do Cony sem que ele pudesse ver esse livro publicado. A partir daí, houve outro tempo ainda maior dentro de mim, que o relógio não dá conta de contabilizar porque ele é infinito. O tempo do luto. Na primeira vez em que tentei voltar ao trabalho, o cheiro de Cohiba, impregnado nas folhas de papel do nosso arquivo, tomou conta do ambiente e me paralisou.
O Cony não estava mais sentado ali, na poltrona perto da minha mesa de trabalho, fumando seu charuto. Eu não podia mais contar com ele; estava profundamente sozinha. E tive medo. Foi um processo longo e dolorido até eu entender que o único lugar onde eu poderia encontrá-lo agora era dentro de mim. E que isso ninguém me tiraria, nem a morte. Doeu. Doeu muito até eu perceber que, apesar de acharmos que o pai vai embora sempre antes da hora, ele não faz isso porque não se importa mais com a gente.
Ele faz isso porque precisa deixar para o filho a missão de continuação. Então, eu entendi que era meu dever terminar o que Cony e eu tínhamos começado juntos. A segunda parte desse livro é o resultado desse processo. E não há dúvida: ela está impregnada do Cony.
Anna Lee é escritora, jornalista e roteirista. Entre outros livros, publicou, em parceria com o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony (1926-2018), o romance reportagem “O Beijo da Morte” e as séries juvenis “Carol e o Homem do Terno Branco” e “Duda, Jacaré & Cia”, cada uma com cinco livros. Como roteirista, seu último trabalho foi a segunda temporada da série “Ilha de Ferro”, do Globoplay. Acaba de lançar “Operação Condor” (Nova Fronteira).