Sou carioca e moro em Berlim. Apesar da distância, tenho contato permanente com o Rio: exponho meu trabalho, acompanho as exposições de colegas e mantenho meu ateliê na Glória. Essas estadas e visitas espaçadas à cidade me possibilitam enxergar algumas mudanças com talvez mais nitidez do que se vivesse no Rio — perceber a cidade como uma carioca que mora longe é quase olhar de fora estando dentro.
Comecei minha carreira como artista plástica, participando da icônica exposição “Como vai você, geração 80?” na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em 1984. Essa exposição foi, em parte, responsável por dar visibilidade a todo um grupo de artistas de várias tendências naquele momento. Nessa mesma década, o meio das artes plásticas começou um processo de profissionalização e intensificação em níveis nacional e internacional. No Brasil, a estrutura de galerias de arte, curadores, colecionadores e instituições se ampliou, e o público também, atraído por uma arte menos hermética do que a da década anterior, porém ainda restrito e com pouca “transversalidade social”.
As artes plásticas se tornaram, desde o advento do Modernismo, no século passado, um clube para iniciados, com vocabulário específico, valores complexos e herméticos que propõem formas outras de apreciação de uma obra. Isso afastou o público dito leigo, esvaziando a cena, e nós, artistas, acabamos falando para uma bolha de também iniciados, expondo para essa bolha e vivendo nessa bolha.
Depois de 10 anos da minha última exposição institucional no Rio, voltei agora, mostrando uma retrospectiva de 40 anos da minha trajetória na Casa Roberto Marinho, sob a direção de Lauro Cavalcanti. O que percebo em 2024 é que esse público, tão caro a nós, artistas, está mais amplo e diverso. A cena das artes plásticas no Rio se diversificou nos últimos anos. O crédito dessa feliz mudança está no trabalho consciente e receptivo das instituições cariocas e na tendência inclusiva do momento atual nas artes. Por outro lado, a elite carioca, que antes só visitava museus fora do país, passou a frequentá-los em sua própria terra, talvez animada pela sofisticação e abundância das ofertas culturais.
As instituições, as maiores responsáveis pela formação de público, vivem o dilema de seduzir e atrair visitação sem cair no artifício da demagogia ou baixando a guarda da sofisticação da linguagem — situação complexa. Uma cidade como o Rio, com uma população de contextos culturais tão diversos, pede acolhimento para o público. Apesar dessas dificuldades e complexidades, ou talvez até por causa delas, percebe-se que a cena das artes plásticas no Rio é singularmente efervescente e plural. Movimentos ainda tímidos um tempo atrás deram frutos e se desdobraram nos últimos anos.
Grande parte desse enriquecimento da cena vem da adesão de outras linguagens e vozes que, antes periféricas, agora ocupam o lugar de protagonismo, trazendo novas matizes para a cena. As instituições cariocas atuantes através do trabalho árduo de sua equipe e fortalecimento consciente de um setor educativo — citando algumas, como o MAR, CCBB, Casa Roberto Marinho, MAM, EAV, Solar dos Abacaxis e Instituto Inclusartiz, dentre muitas outras — são peças fundamentais nesse movimento de integração e difusão de novas vozes. Além disso, temos o trabalho das galerias de arte, que mantêm uma programação constante e antenada numa cidade por vezes designada apenas como um balneário.
Recentemente, em um dia chuvoso, pedi um Uber. O motorista, jovem simpático de Goiânia, me fez algumas perguntas. Acabei contando a ele que sou artista plástica e que estou expondo na Casa Roberto Marinho. Perguntei se ele conhecia. Ele me surpreendeu com um eloquente “claro!”, e continuou: “Vou muito lá com a minha namorada tomar café e ver as exposições”. Para mim foi simbólico: dá para furar a bolha. É um começo, claro. Temos ar para cima, ainda dá para crescer, mas que continuemos assim, furando bolhas. Apesar de eu ser carioca, o Rio sempre pode me surpreender, quando não só pela beleza e pelas esquinas caóticas, mas também por produzir uma cena cultural original, híbrida e verdadeira, capaz de conjugar a melhor da erudição brasileira com a vibrante cena popular.
Foto:@jose.marcal.photo.official
Cristina Canale é carioca, vive e trabalha em Berlim desde 1990. Em 1982 formou-se em Economia na PUC-RJ, na mesma década ingressou na EAV, onde fez cursos de desenho e pintura. Surgiu no circuito de arte ao participar da coletiva “Como vai você, Geração 80?”. Canale mudou-se para a Alemanha, com bolsa de estudos do DAAD ( serviço de intercâmbio acadêmico do governo alemão) na Academia de artes de Düsseldorf. Canale está com a exposição “Dar forma ao mundo”, com 50 trabalhos de 1980 à produção recente, na Casa Roberto Marinho, no Cosme Velho, até 17 de novembro.