O fato de que tanto bolsonaristas possam protestar contra o governo do atual presidente quanto lulistas tenham podido protestar contra o governo do presidente anterior é indício de que muitas coisas melhoraram no Brasil (há 40 anos, protestar contra o presidente teria sido suficiente para mandar uma pessoa para a cadeia). No entanto, isso não deve nos enganar sobre a corrosão do tecido social que está acontecendo sob nossos olhos: vivemos em uma sociedade cada vez mais polarizada, o que é sinal de um ódio descontrolado e crescente que está nos dividindo de maneira irreconciliável. Pais, antes carinhosos, não conversam mais com seus filhos; vizinhos, antes simpáticos, não se cumprimentam mais por causa de um adesivo no carro.
Parece que o ódio veio para ficar. O problema do ódio é que ele submete nossa razão e nos escraviza, sob a aparência enganosa de nos libertar da ofensa que pensamos sofrer. Depois que o ódio se instala, a razão tem dificuldade em controlá-lo — só pode ser contido pelo destino. Há um antigo vídeo norte-americano que mostra isso: um SUV preto sai da garagem de uma casa e entra em uma estrada, sem ceder a preferência a uma outra caminhonete branca que estava passando por ela. O homem da caminhonete branca é tomado pelo ódio, ultrapassa o SUV e bloqueia a via. O motorista sai furioso de sua caminhonete e vai em direção ao SUV, batendo em sua lataria e gritando para quem estivesse dentro sair. A porta do veículo preto então se abre, e sai lá de dentro o campeão mundial dos pesos pesados de boxe, Evander Holyfield.
O ódio do motorista da caminhonete desaparece na hora, espantado pelo medo. Desconfio de que, no fundo, exista certa inveja no ódio (e certo ódio, na inveja), e que quem odeia aquele que é diferente apenas por ser diferente possua uma falha grave de caráter e está destinado a uma existência amarga e infeliz. A sabedoria aconselha a nos afastarmos de pessoas que vivem assim, mas é difícil ficarmos imunes quando são as pessoas que vivem ao nosso lado que exprimem seu ódio contra nós. Houve um tempo em que a parte mais agressiva da rivalidade que separava
candidatos e eleitores se desfazia um dia após o pleito, e ainda me lembro de Lula comparecendo ao velório de dona Ruth, e Fernando Henrique Cardoso comparecendo, anos depois, ao velório de dona Marisa, num indício de que a civilização poderia triunfar sobre a barbárie.
Isso parece ter ficado para trás. Agora não é suficiente opor-se, é preciso odiar, e não é suficiente vencer, é preciso destruir o adversário. Dados preliminares indicam que a violência eleitoral dobrou nas atuais eleições municipais em relação a 2022, e o triste espetáculo que vimos em São Paulo é só um caso extremo de um fenômeno que se tornou cotidiano na política.
Há indícios de que esse seja uma fenômenos global e talvez irreversível, ligado ao modo como as identidades se constituem no mundo contemporâneo. Quanto a mim, prefiro ser um realista esperançoso, como dizia Ariano Suassuna, e acreditar que isso vai mudar. Não pode ser coincidência que tanto eu (juntamente com Davi Lago) quanto Felipe Neto tenhamos lançado, na 27ª Bienal do Livro de São Paulo, livros sobre o combate ao ódio. Prefiro acreditar que, de repente, todo mundo se tornou consciente de seu poder destruidor. Há uma razão para isso: é que toda sociedade depende de algum tipo de cooperação entre seus membros.
E é muito difícil cooperar com quem é guiado pelo ódio, que afasta e isola as pessoas, destruindo famílias e relações que se construíram ao longo de anos. Odiar alguém por ser diferente de nós é uma prova de ignorância, pois a diversidade é benéfica a todos, e uma sociedade com padeiros, lixeiros, médicos e engenheiros certamente alcança um nível maior de bem-estar do que uma sociedade formada de um só tipo de gente.
Marcelo Galuppo é professor da UFMG e da PUC Minas, autor de “Um dia sem reclamar”, de “Um dia sem odiar” (ambos em coautoria com Davi Lago) e de “Os sete pecados capitais e a busca da felicidade”, todos pela Editora Citadel.