Meu primeiro contato com Fernanda Young foi no final dos anos 1980, na Escola Técnica de Comunicação. Era um supletivo na Rua do Ouvidor, no Centro do Rio. Esse lugar foi um refúgio para a galera de Humanas que não se encaixava no ensino tradicional. Naquela época, ela já tinha um visual punk e certamente devia frequentar o Crepúsculo de Cubatão (boate em Botafogo, da turma alternativa).
Tempos depois, quando ela lançou “Vergonha dos pés”, fui correndo comprar e fiquei superenvolvida com aquela narrativa ácida. E tudo que Fernanda fez dali em diante foi objeto do meu interesse. Tive a chance de entrevistá-la para um programa do GNT sobre depressão pós-parto; até hoje, a honestidade dela sobre o assunto ecoa em mim.
Há três anos, quando Marcella Tovar (cineasta) sugeriu que fizéssemos algo sobre Fernanda Young, não hesitei e encarei com coragem e entusiasmo. O que eu não imaginava era o quão desafiador era mergulhar no universo complexo de FY. Os primeiros passos de pesquisa e roteirização foram delicados porque encontramos a família e os amigos de Fernanda ainda muito sensibilizados com sua intempestiva partida. Foram longos meses até conquistar a confiança e a cooperação das pessoas em torno dela. E nesse caso, preciso fazer justiça a Eugênia Ribas Vieira, amiga e editora dos mais importantes livros de Fernanda. Ela nos orientou na pesquisa e no roteiro de forma primorosa e cuidadosa. Mas o grande incentivador e apoio emocional que tive para esse filme foi Alexandre Machado, marido e grande parceiro de trabalho de FY. Sem a participação direta dele, eu teria desistido diante das imensas dificuldades que tive. E confesso que cada obstáculo que encontrei foi fundamental para tornar o filme algo mais próximo possível do que FY faria sobre si mesma. “Fernanda Young, foge-me ao controle” é um filme de montagem e nesse momento, surgem dois artistas parceiros essenciais para a construção estética e narrativa do filme: Clara Eyer e Ítalo Rocha.
Dirigir um filme sobre Fernanda Young é mais do que simplesmente contar a história de uma artista – é um mergulho profundo na alma de uma mulher cuja vida e obra foram uma constante luta pela autenticidade, pelo direito de ser quem era, sem concessões. É se conectar com uma mente fervilhante, em que a criatividade jorrava como um rio caudaloso, ora sereno, ora avassalador, mas sempre impactante.
O processo de fazer esse filme é como entrar em um caleidoscópio de emoções. Cada fase da sua vida – da menina “inadequada” e inconformada em Niterói, passando pela jovem escritora em São Paulo, até se tornar um ícone da TV brasileira – é um universo em si, cheio de contrastes, complexidades e beleza.
Retratar Fernanda é um exercício de respeito e admiração, mas também de coragem, pois capturar sua essência requer que se enfrentem os mesmos demônios e questionamentos que ela enfrentou. As escolhas estéticas não são apenas sobre recriar momentos; são sobre capturar a intensidade de seus olhares, a cadência das palavras que ela escolhia com tanto cuidado, e o silêncio que muitas vezes dizia mais do que qualquer frase poderia expressar. É sentir o peso da solidão que ela às vezes carregava, e o êxtase da criação que a movia.
Gostaríamos que cada sequência do filme pulsasse com a mesma energia inquieta que fez de Fernanda uma força singular na cultura brasileira. A escolha dos filmes para ilustrar os poemas, das performances, e das pausas necessárias para dar espaço ao pensamento, tudo isso deve refletir a vida de uma mulher que nunca se contentou com o superficial, que cavou fundo na alma humana para trazer à tona verdades cruas, mas sempre com um toque de humor e ironia.
Mais do que uma biografia, esse filme é uma carta de amor ao inconformismo, à ousadia de pensar fora da caixa, de viver e criar sem amarras. É um tributo a alguém que, apesar das inseguranças e fragilidades, nunca deixou de acreditar no poder transformador da arte. Fazer esse filme é se deixar afetar por Fernanda Young, é permitir que sua energia criativa continue ecoando, inspirando e provocando, como ela sempre fez.
Susanna Lira é cineasta, diretora de mais de 15 longas, séries e com mais de 50 prêmios em festivais nacionais e internacionais. Lança, dia 29 de agosto, quatro dias depois da data de morte de cinco anos de Fernanda Young (1970-2019), o doc “Fernanda Young — Foge-me ao Controle”. O doc tem argumento de Marcella Tovar e Susanna Lira, roteiro final de Clara Eyer e Ítalo Rocha, que também assinam a pesquisa de conteúdo; e roteiro de Beto e Bruno Passeri.