Ainda que fisicamente longe das zonas de conflito, as pessoas são afetadas pela guerra; estamos tomados por uma sensação interna, muitas vezes, inexplicável, como uma tristeza silenciosa. Os efeitos dessas situações extremas na mente não são visíveis, mas podem desencadear ansiedade, depressão, distúrbios comportamentais e estresse pós-traumático. São os impactos (diretos ou indiretos) dessa violência imensa e selvagem entre Israel e Hamas, como temos visto diariamente no noticiário, completando duas semanas de horror.
Para entender alguns desses efeitos, a coluna conversou com a psiquiatra, psicanalista e professora Maria Francisca Mauro (com consultório no Leblon), criadora do “Portal da Mente”, um canal sobre saúde mental, que foi além da guerra atual e trouxe uma perspectiva para a realidade brasileira.
Nesse sábado (21/10), mais um voo de repatriação chegou ao aeroporto Galeão, com 69 passageiros e 9 animais de estimação. Agora, já são mais ou menos 1,2 mil brasileiros resgatados.
Segundo Joop de Jong, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Comportamentais da Universidade de Amsterdã e autor do livro “Trauma, War and Violence: Public Mental Health in Socio-Cultural Context” (“Trauma, Guerra e Violência: Saúde Mental Pública em Contexto Sociocultural”), “não há, no campo da Psicologia ou da Psiquiatria, nenhum instrumento capaz de avaliar precisamente o quão profundo é o trauma de uma pessoa ou quais situações são mais traumatizantes que outras nesses contextos”.
A guerra tem muitos lados, entre eles, os efeitos “invisíveis” em todo mundo: ansiedade, depressão, distúrbios comportamentais, estresse etc. O que esses impactos deixam em nós?
O impacto que algum evento determina sobre nós depende de como “processamos emocionalmente” o acontecimento. Sem dúvida, para as comunidades judaica e palestina brasileiras, este momento está representando uma forte fonte de sofrimento emocional, assim como para os que têm laços afetivos com pessoas dessas comunidades. Ainda se soma o ingrediente de comunicação atual das redes sociais, que tentam nos fisgar com a isca dessa tragédia como se fosse um jogo de futebol, em que se têm torcidas. Todo o cenário da guerra, o intenso desalento a que assistimos e o grau de insegurança desencadeado podem provocar em algumas pessoas uma forte sensação de ameaça. A intensidade dessa vivência e a forma de interpretar os fatos podem levar a um sofrimento subjetivo, passível ou não de “invadir” a vida de uma pessoa.
Sofrimento subjetivo, como?
A invasão subjetiva acontece quando a pessoa fica tomada por pensamentos catastróficos, sensação constante de tensão, não conseguindo, até mesmo, ter mais momentos de paz subjetiva. Aí, esse “tom” de emoção pode ser um sinal de que a pessoa não está filtrando as notícias da melhor forma para si. A comunidade judaica é muito presente em nosso país e. nos últimos anos, muitos brasileiros migraram para Israel. No Brasil, temos uma proporção maior de pessoas católicas e evangélicas, o que nos aproxima culturalmente de Israel. Essa identificação cultural acaba por nos deixar sensibilizados com os acontecimentos trágicos recentes e mais mobilizados emocionalmente, por exemplo, do que com a guerra entre Ucrânia e Rússia. O conflito atual traduz histórias e personagens com maior proximidade afetiva com muitos cariocas. E laços afetivos ou uma maior empatia acabam por nos deixar mais identificados com todo esse cenário do conflito. Os desdobramentos emocionais dependem do grau de envolvimento que cada um de nós tem dentro das comunidades judaica e palestina. Algumas pessoas têm parentes ou amigos morando em Israel, o que naturalmente nos deixa mais atentos quanto a essas pessoas queridas estarem em segurança. A proporção de palestinos na sociedade carioca é menor: temos uma minoria de muçulmanos, o que diminui a personificação do sofrimento desse grupo, portanto com uma menor identificação quando se assiste às imagens de horror dentro do território palestino. A medida do impacto está diretamente relacionada com o grau de envolvimento que cada um de nós tem com o contexto: quanto mais distante subjetivamente de nós alguma tragédia, menor a tensão emocional desencadeada.
Ficamos marcados para sempre? O que você sugere aos mais atingidos?
A marca subjetiva de um evento traumático está relacionada a como aquela pessoa representa aquela situação em seu psiquismo. Alguns, quando atravessam uma situação-limite, acomodam aquele acontecimento e se reorganizam subjetivamente para resolvê-lo e ultrapassar o problema. Outras pessoas, mediante a mesma natureza de evento, são marcadas por uma ruptura e desagregação emocional. A reação emocional desse grupo é que, por dentro, tudo foi para o “espaço” e se descolam da realidade, permanecem “presos”, remoendo o evento. Nesses cenários, o melhor caminho é a busca de tratamento psicoterapêutico para se reorganizar; e de acordo com a intensidade, poderá ser necessário o tratamento psiquiátrico. Minha sugestão para as pessoas que estão mais emocionalmente abaladas é que procurem estreitar seus laços de conexão social, como a família e amigos, que busquem experiências emocionais que os amparem e possam dar alívio a sua dor emocional. Não se isolar ou paralisar é fundamental. Agora, para aqueles que estão “invadidos emocionalmente” pelos acontecimentos, pode ser interessante buscar suporte profissional para auxiliar nesse reposicionamento emocional.
Falamos com uma brasileira e seus dois filhos. Voltaram de Israel, deixando pra trás uma vida, digamos, arrumada. Ela está com terapeuta, ou seja, vai ter que passar por uma adaptação forçada, embora seja o seu país, mas voltando da guerra a contragosto. Em que isso pode afetar?
Poderá afetar de forma positiva ou negativa. Ela sobreviveu a uma guerra, está no seu país de origem e já em tratamento subjetivo, ou seja, com vários pontos a seu favor. No entanto, deixou para trás uma vida que havia escolhido em Israel. Se ela se aprisionar no que deixou, muito do por vir de sua vida poderá ficar condicionado como algo não bom o suficiente. Se sua forma de elaborar essa experiência for uma associação de ter sobrevivido e o que reconstruir, poderá ter consequências mais positivas para esta sua nova etapa de vida.
E quanto a refugiados, cuja cultura, idioma, tudo é diferente, fora parentes, familiares que deixaram tudo?
Refugiados, por muitas vezes, sobrevivem com maior propensão a sofrer emocionalmente. Em um primeiro momento, há um estresse na luta pela sobrevivência, até chegarem a um local que acreditam ser mais seguro. Depois precisam encontrar uma forma de ter o mínimo para organizar sua vida, como um lugar para morar e conseguir emprego; aí, já na rotina da nova vida, deparam com as diferenças de cultura e falta de suporte social. Constantemente precisam estar lutando para entender onde estão e quais são as normas sociais de onde estão morando. Muitos estudos identificam uma maior propensão de alguns quadros psiquiátricos nessas pessoas que migram de forma forçada e enfrentam muitas adversidades. Todo esse processo de desenraizamento de suas culturas e referências afetivas deixa-os mais vulneráveis para atribuírem as dificuldades reais que enfrentam a limitações pessoais suas. E o julgamento interno, de acordo com a intensidade, pode conduzi-los a um maior nível de estresse, depressão, ansiedade e, mesmo, abertura de quadros psicóticos, como a esquizofrenia.
Não vamos entrar no mérito de quem está lá, vivendo tudo de perto, mas focar em como as guerras afetam os mais sensíveis. Você vê esse tipo de reflexo indireto em pacientes habituais?
A complexidade da geopolítica atual acaba por deixar as pessoas com dificuldades para interpretar a realidade. Aí se soma, para além do complexo, o bombardeio de informações distorcidas e uma tendência de querer reafirmar uma opinião. Em sua maior parte, os pacientes mais jovens, quando capturados pela lógica da “tragédia” e do “fim do mundo”, ficam muito inseguros quanto ao futuro e como pensar no mundo que construirão suas vidas. Na clínica, os que estão mais mobilizados emocionalmente são os que têm laços afetivos com a guerra; de forma subjetiva, estão se sentindo mais vulneráveis emocionalmente.
Como funciona o mecanismo psíquico de alguém ao ficar extremamente envolvido com uma guerra que não vai afetá-lo (diretamente, claro), e do outro lado, uma pessoa que não está nem aí para a situação e diz “não temos nada a ver com isso!”?
Algumas pessoas se envolvem com as tragédias e se desocupam na vida — são formas de delimitar a realidade e se posicionar para a vida. Alguns são mais “emocionais”, e os problemas são experimentados como se precisassem resolver algo que não está ao seu alcance. Algumas pessoas são muito práticas e não querem saber de nada além do que possa ser diretamente do seu interesse. Essa capacidade de “sentir” o problema do outro, ter empatia ou um maior envolvimento com fatos sociais não são do seu interesse. O exercício do equilíbrio entre a emoção e praticidade não pode ficar de fora, para se manter a vida própria em dia, mas com conexão social.
Existem várias opções de filmes sobre guerra, além da própria história, o Holocausto, o antissemitismo, Rússia-Ucrânia… No entanto, como citamos, o professor Joop de Jong afirmou que “não há, no campo da Psicologia ou da Psiquiatria, nenhum instrumento capaz de avaliar precisamente o quão profundo é o trauma de uma pessoa ou quais situações são mais traumatizantes que outras nesses contextos”. A exposição a esse trauma é duradoura?
Certa vez, tive a oportunidade de atender um paciente que sobreviveu ao Holocausto: um senhor alegre e vaidoso. Sua história era marcada pelo agradecimento por ter sobrevivido, ser casado com a mulher que sempre amou, seus filhos e netos. O registro simbólico do seu trauma era a da superação. Também usava as experiências de dor para exercitar a escrita e desenvolver seus livros, ou seja, se reposicionou subjetivamente de forma construtiva. Em outro cenário, atendi um paciente que estava internado em uma clínica psiquiátrica e havia sido mercenário de guerra em Angola. Suas memórias traumáticas eram experimentadas com delírios de perseguição, sentindo que ainda estava em num constante cenário de guerra. A subjetividade é surpreendente, com suas possibilidades e também limitações. O tempo de duração do trauma e a forma de localizá-lo dentro da história de vida dependerão de como isso se inscreveu naquela pessoa. Agora, para os que vivem o trauma de 30 anos atrás, como se fosse ontem, é um indício de que precisa se reposicionar.
Existem outras “guerras” mais próximas aos brasileiros: fome, violência, desemprego etc. Poderia compará-las?
Existem as guerras declaradas e oficiais, nas quais há marcadores pontuais de uma explosão do conflito durante um período de tempo. Quando penso na rotina Brasil, na nossa convivência com a desigualdade social, na violência e em todo o nosso contexto social, reflito que há uma estrutura histórica que nos condiciona a esse “déficit”. Também com uma larga margem para enriquecimento, em que as pessoas podem “mudar” de classe social e vencer na vida. Essa possibilidade de ascender, por muitas vezes, deixa o brasileiro mais conformado: sua miséria ou dificuldade são uma necessidade individual de conquistar seu lugar ao sol. Sublimamos esse grau de desigualdade com que convivemos, pensando que precisamos nos esforçar, trabalhar e fugir da “miséria”. Alguns têm os aparatos necessários para correr; outros vão correndo descalço mesmo; e ainda têm aqueles que não conseguem nem andar. Simplesmente sobrevivemos ao que vemos diariamente nas ruas, com todo o grau da desigualdade, acreditando que há um certo Darwinismo social: aquele que está ali na sarjeta não aguentou a carga que eu carrego. Enfrentamos as guerras do tráfico, da milícia e de toda sorte de violência, com a distância de Israel. Se os conflitos fossem em nossas portas, com boca de fumo na Delfim Moreira e invasão no Jardim Pernambuco, com crianças da Britânica baleadas, seria uma guerra declarada. Agora, a desigualdade embalada para viagem, consumida com moderação, nos possibilita não sentir uma identificação visceral. Algumas tardes passo pelos moradores de ruas e não os vejo; afinal, preciso sobreviver. Em dias mais sensíveis, a miséria dá seus gritos, escuto-a por alguns momentos, mas logo coloco meus fones de ouvido para um podcast de empreendedorismo. Alguns brasileiros mais afortunados se dedicam a causas sociais; outros querem mesmo é o luxo desenfreado. Há os mais sensíveis e aqueles que nem percebem que não estão morando na Suíça. Na luta nossa de cada dia para sobreviver no Brasil, tem que se escolher qual guerra é possível para cada um.
Passamos por uma pandemia, notícias trágicas, guerras recentes, calor extremo e a notícia de que uma equipe de cientistas franceses está, há anos, estudando os chamados ‘vírus zumbis’, patógenos adormecidos há mais de 50 mil anos que podem voltar e infectar humanos justamente pelo aquecimento do Planeta. Como ter ou tentar manter uma saúde mental nestes tempos?
Usar todas essas realidades citadas com doses de sublimação. Se o consumo das informações entra numa espiral emocional, de negativismo e até mesmo ceticismo para vida, se limite ao necessário. O bombardeio de informações, a guerra transmitida até mesmo por soldados, a seca do rio Negro, as enchentes no sul do País e toda a cadeia associativa que podemos fazer das ameaças precisam ser recalculadas para uma vida que se circunscreva à realidade mais próxima. Não podemos nos distrair dos laços afetivos, das trocas mais genuínas e das relações sociais que nos inspiram. Os tempos atuais exigem que descartemos mais coisas; afinal, como aumentaram as possibilidades, as escolhas ficaram mais confusas para muitas pessoas. Saber descartar o que não faz sentido para si mesmo é urgente; os excessos têm adoecido emocionalmente muitas pessoas.
Por Dani Barbi