Segundo a Conferência Internacional sobre Água e Meio Ambiente da ONU (Dublin, 1992) “A água doce é um bem finito e essencial para a continuidade da espécie humana”. Ainda segundo este mesmo órgão, a água é um bem econômico, tendo valor estratégico aos países mais bem abastecidos. No entanto, segundo o Comitê das Nações Unidas para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “O Direito Humano à água prevê que todos tenham água suficiente, segura, aceitável, fisicamente acessível e a preços razoáveis para usos pessoais e domésticos”.
Além disso, declara “água limpa e segura e o saneamento como um direito humano essencial para gozar plenamente a vida e todos os outros direitos humanos” e que as políticas públicas devem preconizar o “fornecimento igualitário de água potável, limpa e disponível para todos” (Assembleia Geral da ONU, 2010, Resolução A/RES/64/292).
No Brasil, a Lei nº 9.433/1997, também conhecida como Lei das Águas, é o instrumento legal que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH). Segundo a Lei das Águas, a PNRH tem como fundamentos:
⇒ A água é considerada um bem de domínio público e um recurso natural limitado, dotado de valor econômico.
⇒ A gestão dos recursos hídricos deve proporcionar os usos múltiplos das águas, de forma descentralizada e participativa, contando com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades.
⇒ Em situações de escassez, o uso prioritário da água é para o consumo humano e para a dessedentação de animais.
⇒ A bacia hidrográfica é a unidade de atuação do SINGREH e de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos.
O segundo artigo da Lei explicita os objetivos da PNRH: assegurar a disponibilidade de água de qualidade às gerações presentes e futuras, promover uma utilização racional e integrada dos recursos hídricos e a prevenção e defesa contra eventos hidrológicos (chuvas, secas e enchentes), sejam eles naturais sejam decorrentes do mau uso dos recursos naturais.
Tudo muito bonito no papel, mas na realidade, a coisa é bem diferente. A PNRH, na prática, nunca foi implementada em sua integralidade. Criada pela Lei nº 9.984 de 2000, a Agência Nacional de Águas (ANA), além de ser o responsável por coordenar a implementação da PNRH, é também o órgão responsável pela regulação do setor, monitoramento de rios e reservatórios, estudos, programas, projetos e informações, além de dar apoio à criação de Comitês de Bacias Hidrográficas (CBHs) na elaboração dos Planos de Bacias Hidrográficas (PBHs) de cada Estado da federação.
Os CBHs são organismos colegiados com atribuições normativa, deliberativa e consultiva, reconhecidos e qualificados por ato do Poder Executivo, mediante proposta do Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CERHI), e compõem o Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SEGRHI). Embora a criação dos CBHs tenha sido um avanço na gestão participativa dos Recursos Hídricos — envolvendo os três segmentos de governança: usuários da água (a CEDAE é um deles), sociedade civil organizada (entidades de classe e instituições públicas ou privadas) e o poder público nos seus três níveis (municipal, estadual e federal) — este modelo pouco ou quase nada contribuiu, efetivamente, na melhoria da gestão das bacias hidrográficas.
Diversos problemas de natureza política e entraves jurídicos, praticamente engessam os CBHs, não permitindo com que os recursos do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FUNDRHI), arrecadados principalmente pela outorga de uso da água, sejam utilizados em prol da melhoria da qualidade da água da bacia hidrográfica.
Além disso, existe outra questão, que é a dificuldade desses três segmentos conversarem entre si. Um não conversa com o outro, ignora o outro ou mesmo joga a culpa no outro. No nível das instituições públicas é ainda mais complicado, “o jogo de empurra” (responsabilidade) é o que predomina. Outro fato agravante é que as bacias hidrográficas passam, na maioria das vezes, por diversos municípios ou mesmo diferentes Estados. Isto complica ainda mais o seu gerenciamento, pois é preciso haver concordância entre os entes federativos para se tomar qualquer decisão.
Na figura abaixo está representado o que chamo de “Ciclo (des) virtuoso da água”. Esse ciclo se inicia com a água pós-tratamento, que sai, teoricamente, potável das Estações de Tratamento de Água (ETAs). Essa água vai ter sua destinação conforme os seus usos múltiplos, sendo utilizada principalmente no abastecimento público para consumo humano e animal, mas também para lavagem de roupa, louças, calçadas, carros em lava-jatos e postos de gasolina e em processos industriais diversos.
Ainda importante salientar que grande parte dessa água é utilizada no esgotamento sanitário das residências e estabelecimentos, carreando grande quantidade de excrementos humanos e animais. Essa água contendo diversos contaminantes é devolvida ao corpo hídrico, muitas vezes sem o tratamento adequado.
Cabe ressaltar que no Brasil a maioria das Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs) só fazem o tratamento da água até o nível secundário, ou seja, retirando a carga de matéria orgânica em suspensão e dissolvida através de processos físicos e biológicos. Poucas fazem o tratamento terciário para remover compostos específicos não biodegradáveis, compostos tóxicos ou, ainda, complementar a remoção de poluentes não biodegradáveis na etapa secundária.
Muitas comunidades ou cidades nem mesmo tratam o esgoto, jogando-o ‘in natura’ nos corpos d’água. Esse é o caso dos três afluentes que deságuam no Guandu, o rio Queimados, Poços e Ipiranga, que passam pelos municípios da Baixada Fluminense de Nova Iguaçu, Seropédica e Queimados, dos quais Nova Iguaçu é o único que tem algum tratamento de esgoto (cerca de 0,1%).
Toda essa carga de matéria orgânica e outros contaminantes leva ao aumento no estoque de nutrientes, principalmente nitrogênio (N) e fósforo (P) — fenômeno conhecido como eutrofização — e, fatalmente, ao crescimento acelerado de microrganismos, especialmente de cianobactérias, levando a um aumento de biomassa que se torna visível pela coloração verde da água. São as chamadas florações de cianobactérias.
Essas florações, muitas vezes compõem-se de espécies que têm a capacidade de produzir toxinas (cianotoxinas) e exercem múltiplos impactos sobre o corpo d’água tais como restrições ao consumo, sabor e odor da água potável alterado, fechamento de praias, degradação da estética, custos para a agricultura, indústria e turismo, além de mortandade de animais domésticos e silvestres.
Vários casos de intoxicação animal e humana, levando inclusive a mortes, foram relatados pela literatura. Em 1996, ocorreu o primeiro caso cientificamente comprovado de morte de seres humanos por intoxicação aguda causada por cianotoxinas (i.e. microcistina e cilindrospermopsina) presentes na água de diálise do Instituto de Doenças Renais de Caruarú (PE), levando a morte de 76 pacientes de hemodiálise.
Outros casos, precedidos de sintomas de gastroenterite, como os que estamos evidenciando nesse episódio no Rio, aconteceram no passado. Em 1988, uma epidemia de diarreia ocorreu por 42 dias em Paulo Afonso (BA), com cerca de 2000 casos de gastroenterite e 88 mortes relatadas. Como não se encontrou nenhuma evidência de agentes patogênicos na água, estes casos foram relacionados à presença de florações de cianobactérias no reservatório de Itaparica. Portanto, devemos estar atentos ao risco disso acontecer novamente.
A crise da água da CEDAE, a que estamos assistindo desde o início de janeiro no Rio, desencadeada pela presença da geosmina — uma substância volátil produzida por cianobactérias e que tem pouco ou nenhum efeito na saúde humana, mas que causa odor e sabor desagradáveis — na água tratada pela CEDAE, revela somente a ponta do ‘iceberg’ da degradação ambiental a que chegamos. Não se deve somente à gestão atual, façamos justiça.
Por décadas, atravessando vários governos, a política de recursos hídricos sofreu da falta de governança séria e responsável, numa área que deveria ser considerada estratégica para o Estado, como é para qualquer um, em qualquer país. E isso não é prerrogativa do Rio de Janeiro, mas um padrão que se repete em todo o território Nacional. Se houve falha ou não na operação da ETA do Guandu, levando a essa crise, é irrelevante diante do quadro de descaso do poder público, que há décadas vem predominando no Estado do RJ.
O que o esquema da figura acima ilustra é que, literalmente, estamos tratando esgoto para produzir a água que consumimos. A degradação dos mananciais de abastecimento público torna o custo do tratamento muito mais elevado do que se tratássemos o nosso esgoto antes de lançarmos nos corpos d’água. O custo inerente à perda da qualidade de vida e da saúde da população também deveria entrar nesta equação.
Se quisermos alcançar os objetivos do desenvolvimento sustentável até 2030, principalmente os de números 6 (Água potável e Saneamento) e 14 (Vida na água), teremos que colocar em prática, desde já, políticas públicas sérias de gestão de nossas bacias hidrográficas. Por mais óbvio que pareça, saneamento básico, universalizado, é a única saída para esta crise.
Aloysio da S. Ferrão Filho
Biólogo, Pesquisador em Saúde Pública da Fiocruz