Numa esquina em Barcelona, moradores atiram jatos de água nos turistas, pelos bares; o Índice Global de Superlotação Turística aponta o excesso de gente nos restaurantes de Rimini, Veneza, Bolzano, Livorno, Trento, Verona e Nápoles; já no Japão, vários restaurantes e mercados de peixe começam a cobrar mais para turistas do que para residentes.
Na retomada das viagens pós-covid (a tal da “revenge travel”), vejo gente por todo o Globo e inúmeras medidas de restrição ao turismo. E aqui?
A gastronomia é o terceiro maior impulsionador de viagens do Planeta, e o turismo gastronômico representa, hoje, 40% da economia mundial do turismo. Essa turma toda que toma água na cara bem que podia se animar e vir para cá, mas as pesquisas apontam que a nossa gastronomia é praticamente incapaz de atrair o turista estrangeiro — justamente aquele que poderia nos salvar e, para quem, aliás, o câmbio nos tornou “de graça”.
Mesmo entre os nossos vizinhos da América do Sul, o interesse em viajar para conhecer a gastronomia brasileira beira os 16%, 17%. Nem vou comparar com a vontade de conhecer a comida europeia, para não matar ninguém de raiva.
E por quê?
O problema começa na partida: o que é a gastronomia carioca? Não sabemos. E não é culpa de ninguém. É consequência de um sem-número de fatores históricos, políticos, econômicos, que venho investigando no meu querido e recém-nascido Instituto Bazzar.
Não nos falta potencial, absolutamente! Estamos sentados na Mata Atlântica; somos uma capital com rara biodiversidade; o Estado tem vocação para folhosas; produtos ímpares (farinhas, queijos, charcutaria); existem vários produtores agroflorestais de excelência: temos sementes e frutas deliciosas que deveriam estar em todas as mesas de restaurantes pela cidade, mas não as conhecemos. Aliás, na maior parte dos estrelados Michelin da Ásia, existe sempre uma etapa dedicada às frutas locais, manejadas assim-e-assado, sombreadas, abanadas, penduradas de cabeça pra baixo, para garantir o melhor resultado. E aqui?
Pouco podemos produzir no perímetro urbano, mas ajudava conhecermos o que é produzido por perto. Isso é parte da nossa cultura e daquilo que chamamos de “identidade gastronômica”. Conhecer nossa identidade é como uma boa sessão de análise: investigamos nosso potencial, para sairmos melhor que entramos.
O mundo conhece as laranjas do Algarve, mas aqui, num município próximo, em Tanguá, as laranjas têm denominação de origem e são cobiçadas, mundo afora, pela doçura, maior quantidade de suco e menor acidez. Sabia? Nós, não.
Por falar em frutas, a maior parte das confeitarias vira o rosto para sementes nativas, produtos sazonais, orgânicos ou ao cacau fino agroflorestal, aqui do Rio, do tipo que movimentaria o turismo, hoje.
Acho lindo quando alguém volta da França e diz que adorou todos os bistrôs terem o menu da estação, com produtos no auge, só naquela época. E eu lhe pergunto… agora… agorinha… sem dar um google, cite três legumes nossos, da primavera que se aproxima?
Silêncio.
Temos mais de 200 espécies de peixes nativos, só aqui na costa fluminense, mas a estrela dos restaurantes é o salmão. Sinceramente, me bate uma certa vergonha. Especialmente porque esse não é “aquele” salmão que cobiçávamos nos anos 1990. É um produto cheio de antibióticos, corantes, sem sabor ou nenhum interesse turístico. Por onde andam os mariscos nativos, aliás?
Perguntei ao oráculo contemporâneo e maior ferramenta do turista, o São Google, em inglês: “o que é a gastronomia carioca?”. Entre os 50 primeiros resultados, há pérolas, como misto quente, joelho, pão de queijo e moqueca… capixaba! Infelizmente, é sério. Eu abri um Instituto de Turismo Gastronômico só para me irritar com isso tudo.
E mais: apesar do carinho e relevância histórica dos botequins, eles não são a única identidade do Rio de Janeiro. Ao contrário do que fizeram as “tascas” ou “casas de tapas” na Europa, que seguem tradicionais, sem ficar datados, vários dos nossos botecos não se adaptaram aos novos tempos. Temos muito poucos exemplares com ingredientes nativos; não reconheceram o aumento do mercado vegetariano — a maioria migrou para produtos terrivelmente industriais e quase nenhum reflete nossa diversidade.
Somos a capital da gastronomia pasteurizada, da “burrata com tomatinho”, das mil versões de carbonara, dos tartares de salmão com shoyu. Nossa fruta preferida é um morango ácido, que não tem vocação no Estado. Somos uma cidade sem identidade gastronômica, no prato ou no copo, apesar de todo o nosso potencial.
O prestígio de Lima, como destino guloso, foi construído. Não foi por acaso e nem foi sempre assim. A cidade é bacana, mas não tem os atrativos naturais do Rio de Janeiro. Sabe o que tem lá? O dobro de turistas estrangeiros que temos aqui, graças a um trabalho de 25 anos voltado para a atração do globe-trotter gastrô. E Londres? Era conhecida como a terra dos “fish & chips”, mas um trabalho de governo, em conjunto com o setor privado, levou a cidade ao terceiro lugar no pódio, como capital com mais estrelas Michelin no mundo.
Escrevo sobre gastronomia e viagens há quase 30 anos, já contribuí para guias e veículos nacionais e internacionais e posso garantir que tem jeito! A mudança começa por nós mesmos, na nossa demanda por originalidade e identidade.
Não adianta culpar só a infraestrutura e a violência: a responsabilidade começa no nosso estômago. Afinal, quando “estamos” turistas, não queremos viajar 80 ou 800km para comer mais uma versão de salada caesar.
Pois é. O Rio precisa de uma sessão de análise para elevar a autoestima e descobrir o que o Instituto Bazzar já sabe: somos lindos na praia, na gente, na música e, se a gente quiser, também no prato.
Foto: Rodrigo Azevedo
Cristiana Beltrão se dedica há mais de 20 anos à gastronomia, com paixão. É fundadora do Instituto Bazzar (o nome vem do restaurante que funcionou de 1998 a 2022, em Ipanema), lançado em abril, com sede no Jardim Botânico, com a missão de promover ingredientes brasileiros. É também colunista de gastronomia e viagens (no crisbeltrao.com), e pesquisadora em tempo integral.