Vem aí o “Outubro Rosa” e, com ele, milhares de campanhas sobre prevenir o câncer de mama. Segundo pesquisa de julho, da Universidade Federal Fluminense (UFF), uma em cada seis mortes por câncer de mama acontece em mulheres com menos de 50 anos, destacando a importância de iniciar o rastreamento da doença a partir dos 40, como indicam as sociedades médicas, e não a partir dos 50, como recomenda o Ministério da Saúde.
Contudo tem gente que luta pela causa a vida inteira, como a médica Maria Julia Calas, presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia do Rio, vice-presidente do Instituto Nosso Papo Rosa e coordenadora do Centro de Imagem da Clínica São Vicente, na Gávea. No próximo sábado (28/09), às 9h, ela fará mais uma edição do “Nosso Papo Rosa — Raízes”, no Teatro Claro Mais, em Copacabana, aberto ao público, em edição comemorativa de sete anos, com a oncologista Sabrina Chagas, amiga de Calas e também fundadora do instituto, do oncologista Carlos José de Andrade, do INCA; da médica paliativista Germana Hunes; da atriz Clarisse Derzié Luz, madrinha do evento desde o início; além de psicólogos e nutricionistas, tudo com mediação da drag queen Suzy Brasil, personagem do ator e roteirista Marcelo Souza, sucesso nas redes e nos teatros cariocas, uma proposta para dar leveza ao assunto.
“Eu achava que não era capaz de falar de assuntos sérios porque minha linha de trabalho sempre foi o humor escrachado, picante. Agora, vem o desafio: falar de câncer de mama de forma leve, levar alegria para pessoas que estão passando pelo tratamento e seus familiares. Minha função no Papo Rosa não vai ser esclarecer e, sim, fazer as pessoas rirem, se soltarem. Elas precisam ficar à vontade para tirar suas dúvidas e contarem suas histórias”, adianta Suzy.
Deu tão certo, que a ONG também virou livro, “Nosso Papo Rosa: um guia informal e direto sobre câncer de mama” (2021), com esclarecimentos de vários médicos destacados, além de opiniões e relatos das frequentadoras do projeto.
A própria Sabrina Chagas, que trabalhou por oito anos no INCA, passou pelo câncer de mama do pai (homens também têm, apesar de raríssimo, com apenas 1% dos casos), o médico mastologista Ricardo Chagas (ex-presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia), que fez tratamento por 121 dias, então aos 68 anos. Nessa experiência, Sabrina trocou de lado: conhecendo de perto a angústia das famílias, como aquelas com quem convivia no ambulatório do INCA, escreveu toda essa história no livro “Como estamos? O desafio do câncer de mama”, em 2015, um título que é uma referência às conversas de pai e filha via WhatsApp: “Como vamos?” era a pergunta diária que ela fazia.
1 – Como surgiu o instituto?
Eu e minha amiga e parceira de trabalho, Sabrina Chagas, idealizamos o Instituto Nosso Papo Rosa em 2017, diante da necessidade urgente de desmistificar o câncer de mama e oferecer um espaço seguro de diálogo, onde a informação correta se alia ao acolhimento. Apesar de ser uma doença grave, o câncer de mama tem visto avanços significativos nas últimas décadas, com novas opções de tratamento que aumentam as taxas de cura e melhoram a qualidade de vida das pacientes. Nossa ideia sempre foi a de promover um espaço para fazer perguntas que nunca tiveram coragem. Recebemos pacientes, que também podem ser homens, familiares e quem mais quiser vir.
2 – Mas a doença é ainda cercada por um estigma?
Sim, o estigma do diagnóstico ainda é forte. Muitas pessoas veem o câncer de mama como uma sentença de morte, o que prejudica a adesão ao tratamento, alimenta o medo e atrasa a busca por ajuda. Nesse cenário, a informação é uma aliada poderosa, e foi com essa base que fundamos o “Nosso Papo Rosa”, para promover conscientização, prevenção e oferecer suporte emocional e informações multidisciplinares a mulheres e suas famílias.
3 – E, desde a fundação do “Nosso Papo”, até agora, o que você destaca?
O evento cresceu muito. Antes fazíamos para 200 pessoas e este, de agora, é para 500. Já fizemos mais de 50 eventos impactando diretamente cerca de 3 mil pessoas. As histórias de superação e transformação que testemunhamos ao longo desses anos provam que estamos no caminho certo. Nossa meta é que a população compreenda a importância do diagnóstico precoce, pois ele salva vidas, e é fundamental que todos tenham acesso a essa informação.
4 – O convite para Suzy, além da leveza, tem a ver com o foco no público LGBT+?
Esses momentos de humor e reflexão são essenciais para equilibrar a seriedade do tema, tornando o assunto mais acessível e menos assustador. E este é outro aspecto importante do nosso trabalho: garantir que os LGBT+ também façam parte dessas discussões, em especial as pessoas transgênero, que enfrentam desafios únicos em relação ao rastreamento do câncer de mama, porque são pessoas que fazem uso de hormônios (estrogênios) para ter características próprias do sexo com o qual se identificam e tomam hormônios em doses elevadas, por períodos muito longos. Elas têm maior foco nosso de interesse na investigação do câncer de mama, até porque há uma enorme falta de pesquisas e protocolos específicos para essa população, e essa é uma das causas que abraçamos no Instituto. Lutamos para que todas as pessoas, independentemente de identidade de gênero, recebam o mesmo cuidado e tenham acesso ao diagnóstico precoce e ao tratamento adequado. O preconceito também diminui as chances de as pessoas trans terem um atendimento médico digno e, consequentemente, atrapalham o acesso aos tratamentos e a diagnósticos no tempo adequado.
5 – Qual o maior desafio no diagnóstico?
Falando mais de SUS, acho que são a informação e o acesso. Por mais que a gente faça muita campanha de “Outubro Rosa”, ainda falta informação para grande parte da população, de todos os níveis, de todas as formas de entendimento. A gente informa, mas a pessoa têm que ter o acesso à realização desses exames. Só para você ter uma ideia, nós, como sociedade (de mastologia, de ginecologia e de radiologia), temos como consenso, como diretriz, o rastreio do câncer de mama das mulheres de 40 a 74 anos de forma anual. O Ministério da Saúde estipula de 50 a 69 anos a cada dois anos. Infelizmente, o câncer de mama continua sendo a doença que mais acomete mulheres no Brasil e no mundo. Nossa luta é para que, no futuro, informação, apoio e cuidado estejam ao alcance de todos. Somos um país com regiões heterogêneas de desenvolvimento, e o acesso à mamografia, em muitas cidades, ainda é limitado. A falta de conhecimento da população sobre a detecção precoce do câncer de mama pode resultar em atrasos nos exames e diagnósticos. A sociedade precisa quebrar preconceitos e tabus com relação à pessoa com câncer. Em muitas coisas ditas, em vez de apoio, o que se vê são agressões emocionais. Infelizmente, ainda há pessoas com limitação de falar sobre o câncer, mesmo em 2024 – o câncer é aquele sinônimo de morte, uma sentença de morte, de fim de vida, que não há mais nada depois disso, mas não é a nossa realidade com relação ao câncer de mama.
6 – Existe também a negação?
Sim, a questão do medo, do diagnóstico. Existe também a questão já relacionada à informação, que é “se eu não sinto nada na minha mama, se eu não percebo nenhuma alteração, se não dói, se minhas mamas estão normais, eu não tenho câncer, eu não tenho doença, eu não preciso fazer exames”. Sabemos que isso não é real, então, porque a mamografia e os outros métodos de imagem que a gente possa utilizar, seja ultrassonografia e até alguns casos específicos, a ressonância magnética, nós sabemos que vamos detectar o câncer inicial com mais de 90% de chances de cura e vamos ter tratamentos menos agressivos, com menos custos e com mais qualidade de vida para essas mulheres. E, claro, associando aí também, na questão qualidade de vida, resultados estéticos mais satisfatórios, com cirurgias menos mutiladoras.
6 – E sobre esse rejuvenescimento do câncer de mama (dos 50 para 40 anos) constatado pela SBM?
O Brasil tem uma casuística (registros de casos clínicos) diferente de alguns outros países numa faixa etária mais precoce. Quando a gente fala mais precoce é abaixo dos 50 anos e, principalmente, abaixo dos 40. Existe uma mutação genética comprovada em que há uma grande quantidade de mulheres com essa mutação aqui no Brasil, que faz com que esse câncer se apresente de forma mais precoce. Por isso, nós também batalhamos pelo rastreio genético pelo SUS; inclusive, o rastreio genético de forma privada ou por convênio já existe, mas batalhamos isso via SUS também. Então, são mulheres mais jovens sendo diagnosticadas mais precocemente. Infelizmente, o Ministério da Saúde só estipula a mamografia de rastreio de câncer de mama apenas a partir dos 50. Abaixo disso, só faz mamografia se já tiver tumor palpável. O câncer mais comum em mulher jovem é o tipo mais agressivo, chamado “triplo negativo”. Percebemos essa precocidade de uns seis anos pra cá, de forma muito clara.
7 – O que é mais recompensador no seu trabalho à frente do Instituto?
Trabalhar é gratificante de todas as formas, desde que a gente possa ajudar as mulheres. É poder informar, orientar, ajudar e, com isso, levar um diagnóstico precoce, com menos mutilação, menos custos, mais qualidade de vida, uma sobrevida mais longa, chances de cura. Essa menina jovem, quando tem câncer de mama, ainda pode engravidar; a gente sabe da possibilidade de uma gestação, então, esses tratamentos são importantes. O ideal é que tivessem acesso a poder realizar seus exames de rotina; então, informação é tudo.