Há alguns anos, numa exposição no MAM do Rio, em conversa com um amigo sobre as obras expostas, eu comentava que havia apenas uma pintura com temática referente ao interior do Brasil. Ele retrucou que era assim mesmo, que ninguém se importava com o que estava acontecendo no interior. Fiquei com essa pulga atrás da orelha e talvez, inconscientemente, motivado por essa conversa, iniciei, tempos depois, uma pesquisa sobre a paisagem do interior fluminense.
Depois de muitas andanças por essas paragens, muitas fotografias e pesquisa, o saldo visual era de uma paisagem que, todo ano, era destruída por todo tipo de agressões, mas que teimava em se regenerar, em sobreviver. O que mais impacta, depois de todo esse tempo de observação, é a insistência em se queimar o que resta de natureza em nosso interior — lugares onde, muito mal, o mato baixo consegue sobreviver são sistematicamente incendiados, ano a ano. O incrível é que, depois da devastação, em questão de poucos dias, a natureza recrudesce, surgem brotinhos, rebentos… Tudo renasce, tudo brota, vinga, medra. A partir desse processo de morte e vida, comecei a usar os elementos dessa paisagem para construir meu trabalho.
Foi uma longa caminhada. Fiz várias viagens registrando cenas de degradação ambiental, queimadas, desertificação e também lugares onde se preserva a floresta, tão primordial para a manutenção da saúde dos rios e solo brasileiro! Fiz cursos de agrofloresta e regeneração ambiental e vi quanta gente está interessada em reverter o processo da destruição. Fui para o Parque Nacional de Itatiaia participar da residência Casero, que recebe artistas para uma imersão na floresta nativa da região. Acompanhei o trabalho de pessoas maravilhosas, como o professor Inácio Pestana, que monitora a água dos rios e seu nível de contaminação, e o paisagista Ricardo Cardim, que leva adiante o projeto “Floresta de Bolso”, onde cria pequenas florestas em áreas urbanas, contribuindo para o conforto ambiental da população e diminuição do calor nas cidades, e o coletivo “Brigada Cipó”, formado por voluntários que, todos os anos, combatem incêndios florestais na Serra do Cipó, em MG, arriscando a própria vida a favor da preservação ambiental. Também participei do projeto “Cinzas da Floresta”, no qual o artista Mundano recolheu cinzas de queimadas por todo o Brasil e organizou uma ação com artistas que trabalharam com essas cinzas. As obras resultantes, mais de mil, foram vendidas, e o dinheiro arrecadado foi todo doado para as brigadas que combatem incêndios florestais por todo o país.
Falar do interior do Brasil é falar de um lugar que está se tornando um deserto; não há como negar o estado de emergência climática que estamos vivendo. O cotidiano já dá conta de esfregar essa realidade na nossa cara — convivemos com secas prolongadas e alagamentos cada vez mais frequentes. Saindo da cidade, ao olhar para os morros, vemos imensas áreas de terra nua onde nem o mato rasteiro consegue sobreviver, formando um semiárido no lugar onde outrora existia uma natureza exuberante. A partir dessas vivências, desenvolvi várias séries de trabalhos, que resultaram em diversos projetos. Na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, apresentei a exposição “Serrapilheira”, onde realizamos encontros e discussões sobre os processos de degradação ambiental e oficinas com o educativo da casa, mostrando os processos utilizados por mim nos trabalhos. No Sesc Campos, tive oportunidade de fazer parcerias com grupos que batalham pelos reflorestamentos rural e urbano, como o coletivo “Campos mais verde”, da cidade de Campos dos Goytacazes, e “Noroeste mais verde”, que atua na região da cidade de Itaocara. Também promovemos oficinas e conversas sobre meio ambiente e doação de mudas de árvores para alunos de escolas do ensino público.
A exposição “Terra Vermelha” no Paço Imperial, no Centro do Rio, dá continuidade a essa série de projetos. Nas palavras do curador Lucas Albuquerque, “o limiar que separa os campos da prática artística e da vida cotidiana foi objeto de longa discussão nas artes visuais, tendo alguns artistas se tornado partidários do estabelecimento dessa separação; outros acreditam que a potência da arte se faz justamente no entrecruzamento dos dois campos”. Para desenvolver os trabalhos que estarão expostos, acredito que me mantive na segunda opção. Durante a mostra, faremos visitas guiadas, conversas e tentaremos parcerias com grupos do Rio, como o “Olaria Verde”, que trabalha arduamente no plantio de árvores no bairro de Olaria e “Refloresta Rio”, da prefeitura.
Ao contrário do que afirmou meu amigo no passado já longínquo, o mundo da arte está tentando se abrir para as periferias. Prova disso é que podemos ver artistas de todo o Brasil conseguindo visibilidade ao trazer questões fundamentais para o entendimento de nossa identidade diversa e nosso papel fundamental na continuidade das condições favoráveis à vida no Planeta.
Foto: Leo Lara
Raul Leal nasceu em Miracema (noroeste fluminense), é artista visual formado pela EAV do Parque Lage e especialista em gestão cultural pela Fundação Cecierj RJ. Neste sábado (03/08), vai inaugurar a mostra “Terra Vermelha”, no Paço Imperial, com curadoria de Lucas Albuquerque, mostrando questões ecológicas do interior fluminense, usando a arte para provocar reflexões sobre as agressões ao ecossistema. Ele tem trabalhos expostos em várias instituições: Museu de Arte Moderna do Rio, Museu de Arte de Blumenau, Biblioteca Nacional, Universidade Federal do Espírito Santo e assim vai. @raullealstudio