No palco, trabalho com a história “Ensaio para um adeus inesperado”; na vida, a expectativa é com o último ato do meu pai. Conjugar o luto na ficção e na realidade também é uma decisão.
“Quer escolher não ser lembrado?”. A mensagem não era sobre o direito ao esquecimento (até porque nem sei se o tenho), quando leio que “entendemos que o Dia dos Pais pode ser um momento sensível para alguns”, pois, querendo ou não, eu ainda tenho pai. Ainda.
Não sei por quanto tempo, mas tenho. A certeza é que sim, por pouco tempo, se é que tempo se mede, mas tenho. A confirmação da morte por uma doença que já anunciou o seu fim tornou-se rotina e, com certa surpresa, me fez enxergar que na vida, assim como na morte, temos escolhas.
Será? Enquanto convivo com a enfermidade do meu pai na vida real, no trabalho vejo como ela, a morte, não tem fórmula mágica, não concede privilégios: é, literalmente, democrática até o fim. Nas palavras da personagem de Natália Lage, há muitas perguntas e nenhuma resposta em “Ensaio para um adeus inesperado”.
Um luto antecipado como o meu ou um do palco não têm explicação alguma. Na ficção ou na realidade, a morte, seja em sua forma esperada como a minha, seja inesperada como da peça, é sempre uma incógnita: nunca sabemos nossa reação, nossos sentimentos porque, acredite, estes também dependem de outras pessoas.
Faço a assessoria institucional e jurídica do espetáculo; então, o trabalho sobre superação de uma mãe enlutada não é mera coincidência com a realidade: é uma realidade tal e qual a finitude. Quanto a ela, não temos possibilidades. Vamos morrer é um fato, mas podemos viver antes.
E como? Assim como no e-mail recebido hoje (texto de um dueto dos atores escrito por Sérgio Roveri). Há a escolha entre lembrar e esquecer, enterrar-se viva e viver; na vida, também. Sem adiantar nada, o texto de Sérgio Roveri, em um dueto ininterrupto de Natália com Caio Manhente, é como esse correio eletrônico — uma mensagem para te fazer refletir sobre a delicadeza da arte e a nobreza da humanidade em pensar no outro.
Entre a vida e a morte, neste que é literalmente meu último Dia dos Pais, escolho esquecer. Há quem prefira lembrar como no espetáculo. E talvez seja esta a maior lição que aprendo, seja com o e-mail, seja com o teatro, seja com a vida: sempre há uma opção.
Há uma cena em que a personagem diz algo muito simples e, ao mesmo tempo, completamente forte:
“Talvez fosse alguma coisa sem importância, mas mesmo um elástico, um único clipe, (…) tudo isso tem um nome, e ninguém precisa se referir a eles como alguma coisa. Talvez ele não estivesse querendo dizer absolutamente nada, mas é, no mínimo, cruel acreditar também que as últimas palavras que eu ouvi do meu filho fossem estas, tão despidas de importância.”
Não temos nome para tais dores. E chega a ser perverso como elas faltam quando como, por exemplo, fui à loja comprar uma camiseta para o meu pai. “Ele tem que vir aqui”, disse a vendedora. “Mas meu pai está morrendo e só esta camisa não o incomoda”, tento explicar. “São as políticas da empresa”.
E são essas mesmas políticas, só que sociais, na peça: do que escutamos quando alguém morre, ou, como eu, está para morrer. Isso não conseguimos escolher porque é impossível fechar os ouvidos como fechamos os olhos. Talvez possamos preferir receber ou não e-mails sobre o Dia dos Pais um dia depois que o luto for realmente compreendido como um processo real — com tristezas, alegrias, momentos de desespero e também de alívio. “Eu sei que o motivo da dor de hoje é o mesmo da piada de amanhã” é uma das frases mais profundas que já ouvi e, agora posso dizer, vivi. Vivo. E, sim, é uma escolha rir e chorar.
E é impossível ensaiar para a morte, mesmo quando ela é esperada. É como uma peça: é impossível prever como será a apresentação, pois tudo pode acontecer. Mesmo assim, os atores Caio e Natália não deixam de ter a coragem para pisar no palco e encenar um adeus inesperado. Por que nós não podemos tê-la também?
“All the world is a stage” (“O mundo inteiro é um palco”) foi o que o produtor Guilherme Scarpa me disse na noite da estreia. Citando Shakespeare, ele me fez ver que, se o mundo é um palco, somos todos atores desse espetáculo que é a vida. E também na morte. Por que não?
E é me inspirando nessa possibilidade de ser atriz do meu próprio destino, que fico aguardando o último ato do meu pai como naquele e-mail recebido em uma quarta-feira à tarde: uma escolha. Somente isso. Aos poucos, piso no palco da vida, aguardando a direção do destino em outros ensaios como este, com palavras inspiradas depois de uma comunicação de uma papelaria, entendendo que, talvez (veja bem, talvez), a morte seja a verdadeira representação da vida entre atos. Ou vice-versa.
Que fechem as cortinas. E saibamos aplaudir de pé.
Ivy Farias, advogada, jornalista e escritora, faz a assessoria da peça “Ensaio para um adeus inesperado”. O espetáculo tem direção de Ana Beatriz Nogueira e Lena Brito e produção da Dobbs Scarpa, com Natália Lage e Caio Manhente no elenco, texto do dramaturgo paulistano Sérgio Roveri e trilha sonora de Zélia Duncan. “Ensaio” fala de luto: a maternidade e a dor pela perda de um filho. Está em cartaz sexta, sábado e domingo (09, 10 e 11/08), às 20h; e 11/08 às 19h, no Teatro da UFF, em Niterói.