Nos últimos tempos, a Academia Brasileira de Letras anda mais vibrante, tanto em eventos físicos como nas redes sociais, em sintonia com o agora, digamos assim: faz festas, visitas e palestras em sua sede, digitalizou o acervo, defendeu a ciência, a liberdade e os valores democráticos. Em 2023, depois de 26 anos, voltou a ter um estande na Bienal do Livro do Rio, evento preferido dos jovens leitores, e passou a ter um totem na versão virtual de Machado de Assis, que responde a perguntas e interage com o público, usando IA.
A direção também é mais abrangente, um rumo mais atual e artístico, com a atriz Fernanda Montenegro, o músico Gilberto Gil e o filósofo indígena Ailton Krenak, sendo o último nome a integrar a cadeira número 9, em março, a professora Lilia Moritz Schwarcz, onde se sentou o diplomata e historiador Alberto da Costa e Silva, morto em novembro de 2023. A antropóloga e historiadora recebeu 24 dos 38 votos possíveis e é a primeira professora mulher da USP a se tornar “imortal”. Ela é também professora visitante na Universidade de Princeton (EUA), ou seja, mulher que se faz valer de si mesma. No dia da posse, uma carioca brincou: “Ela tem talento pronto para ser mostrado”.
A academia só abriu a eleição para as mulheres em 1976, e Lilia é a 11ª mulher, ou seja, menos de 1% do total de homens eleitos. “A ABL é também expressão dessa sociedade brasileira, que precisa ser mais equânime no critério de gênero. Falo com a humildade de uma intelectual formada e professora na USP que quer lutar por um país mais plural também nas instituições que constroem a própria identidade do nosso país”, disse ela quando eleita. E uma convidada brincou: “Essa nem precisa de esforço a seu favor”. Rsrsrsrsrsrrs.
Lilia é uma das mais respeitadas estudiosas das questões raciais no Brasil. Já publicou quase 30 livros, entre títulos que escreveu sozinha, em parceria e organização de dicionários temáticos. Em agosto, lança “Imagens da branquitude: a presença da ausência”, pela Companhia das Letras, editora fundada por ela e o marido, Luiz Schwarcz, em 1986. O casal tem dois filhos, Júlia e Pedro, que trabalham na editora. Leia sua entrevista:
UMA LOUCURA: A minha docência em Princeton — universidade onde leciono faz mais de 10 anos e que combino junto com a USP — me proporciona muito conhecimento, um contato assíduo com o ambiente acadêmico norte-americano, a possibilidade de desenvolver novas pesquisas e, também, algumas loucuras. Uma delas foi ter resolvido tomar o trem no começo da noite, de Princeton para Nova York, ardendo de febre, num frio de menos zero, para assistir a um show de meu “bardo” Bob Dylan. Eu havia ganhado um bilhete e, na falta de companhia, resolvi ir sozinha, coberta dos pés à cabeça. A oportunidade de ver Dylan entoando as suas músicas, que são hinos de geração, compensou a “loucura”. O show passou rápido; já a febre é que fez latifúndio no meu corpo. Tomar chá de casa virou uma ótima oportunidade para escutar Bob Dylan. Sempre.
UMA ROUBADA: Se acertei em ter ido assistir ao Bob Dylan, errei feio ao desistir de ver David Bowie, e em São Paulo, onde moro. Como dizia minha avó, a gente se arrepende do que não faz; não, do que faz. E perdi a oportunidade de ver de perto esse mestre da música, da moda e dos costumes — um artista que revolucionou o gênero e influenciou uma multidão, mesmo sem querer; essa pessoa irreverente, com um olho azul e outro cinza e que pisca para o mundo com Space Odity e Ziggy Stardust. Aprendi que, ao invés do “ser ou não ser”, o “ir ou não ir” pode dividir a nossa existência.
UMA IDEIA FIXA: Venho de uma família que sempre acreditou e apostou na igualdade de direitos e me ensinou a importância de viver e de lutar por um país mais justo, pois inclusivo e plural. Estudei e me formei em escolas públicas, de qualidade, que repisaram a mesma tecla: a justiça precisa priorizar a igualdade, a diferença, as quais, por sua vez, são as melhores respostas para a intolerância e o autoritarismo. Esses motes viraram “ideia fixa” na minha vida, mas não qualquer ideia fixa. Como diz Machado de Assis: “deus me livre de ter uma ideia fixa”. Não me refiro, pois, a uma teimosia ou a uma veleidade quaisquer, mas ideia fixa, como a procura de uma utopia — uma utopia possível.
UM PORRE: Agora vou frustrar os leitores e as leitoras. Bem que tentei, mas não contabilizo na minha vida um porre de verdade. Bebo vinho; com ele, venço a minha timidez que se apresenta nas horas mais inesperadas, e até indesejáveis. Mas tive na família pessoas próximas que bebiam demais; talvez por isso, bebi de menos. Bebo pouco, mas não sou chata. Encaro a onda até com um guaraná.
UMA FRUSTRAÇÃO: Perdi meu pai quando ele tinha 41 anos e eu, 18. Ele era meu melhor amigo, meu confidente, meu ombro, minha melhor companhia. Estávamos nós dois, conversando, quando veio um infarte fulminante. Confesso que demorei a entender o que estava acontecendo, como ainda não entendo. Mas o mundo parou naquele momento, e durante muito tempo, pois, conforme escreveu Guimarães Rosa, era “dor do meu direito”. Até hoje, me frustro quando penso nas histórias que ele não me contou e nas novidades que não pude contar para ele. Sua morte repentina foi uma imensa frustração: um vazio sem chance de preenchimento, um silêncio que ainda produz imenso barulho na minha alma.
UM APAGÃO: Quando meus filhos eram ainda bem jovens (Júlia com 3 anos e Pedro, um bebê de colo), contraí uma doença rara, da qual tive que ser operada. O planejado é que o pós-operatório fosse rápido e simples; eu acordaria no quarto do hospital e por lá ficaria por poucos dias. Mas acabei na UTI e permaneci naquele lugar estranho, onde o tempo fica suspenso, por uns bons dez dias. A cirurgia foi muito maior do que todos previam. O problema é que, por lá, quase inventei movimento social, uma insurreição, e, sem qualquer condição, dei que dei de cuidar dos demais pacientes. Levantava sem autorização alguma e procurava acalmar os demais “colegas” de UTI, quando não dizia para as pobres enfermeiras que precisavam “dar um jeito” no sofrimento alheio, que eram umas “insensíveis”. Quase inventei um sindicato. Imagino que as profissionais devem ter festejado quando deixei aqueles recintos. Só soube dessa história quando já estava num aposento regular do hospital, e recebi a simpática visita de uma das enfermeiras (na verdade, as minhas “vítimas”), que, rindo muito, me contou que até aula de republicanismo e democracia eu dei para elas. Nem que me forçassem, não lembro de nada: apaguei tudo da memória.
UMA SÍNDROME: Sofro com “síndrome de culpa”. Irmã do meio, judia de origem e mulher sempre que chega uma notícia nova, mais preocupante (digamos assim), acredito que a culpa é minha. Lembro que, bem menina, aprendi com meu irmão a andar de bicicleta. Minha primeira volta no quarteirão foi do tipo “sem condições”: não tinha equilíbrio suficiente tampouco noção do espaço que minha bicicleta ocupava. Em poucas palavras, era um perigo ambulante. O resultado é que colidi com um automóvel que saía da garagem na mesma hora em que eu, desajeitadamente, procurava me manter equilibrada na bicicleta. Levei um belo tombo e com o joelho todo ralado, e sangrando, dirigi-me até a motorista e me saí com esta pérola, do alto dos meus 7 anos: “A culpa é toda minha e quero pagar pelos prejuízos”. Só lembro que a pessoa que estava na direção do veículo gargalhou durante 5 minutos, o que me ofendeu demais — não muito, pois ganhei um chocolate e uma façanha e tanto pra contar. Mas continuo assim mesmo: diante de uma notícia mais negativa, minha primeira reação é achar que a “culpa” é toda minha. Trata-se de uma síndrome que, se não é incurável, ainda faz parte da minha realidade. Em tempo: “disse alguma coisa errada? Se sim, a culpa é toda minha”. Rsrsrs
UM MEDO: Tenho muito medo de, em determinadas situações mais conflitivas, não ser humilde o suficiente para conseguir ouvir uma opinião alheia e divergente. A escuta é, na minha opinião, uma grande virtude democrática. É preciso saber ouvir, concordar (e mudar de opinião) e discordar também, porém sempre com a abertura necessária ao diferente e à alteridade. Vivemos num mundo tão polarizado e afeito ao ódio fácil que tenho medo de ser contaminada com o vírus do pedantismo que nos assola nos últimos tempos.
UM DEFEITO: Sou uma capricorniana bem típica, e conhecida pela teimosia: quando encasqueto com algo, tento de um jeito, tento de outro, e vou em frente. A única vantagem é a persistência; minha teimosia (defeituosa) me faz nunca desistir. Por outro lado, não me orgulho quando insisto demais. Nessa hora, só com muita análise aprendi a abrir mão e parar de fazer o jogo do “concordar discordando”. Muitas vezes, é melhor saber perder e desapegar.
UM DESPRAZER: Nunca achei que sofreria muito, mas ver o meu time de futebol, o Corinthians, ter sido rebaixado para a segunda divisão, em 2007, mexeu comigo. Comecei a ouvir os rojões, alguns amigos (?) me ligaram para zombar do que havia ocorrido; senti uma frustração que não dimensionei previamente. Em vez do desdém, acabei na cama, amargando a derrota com meu fone de ouvido. Só me acalmei quando ouvi o amigo e jornalista Juca Kfouri (corinthiano como eu, e muito mais do que eu) dizer que íamos agora conhecer os rincões do estado de São Paulo. Ainda bem que passou rápido. Outro desprazer parecido eu senti quando fui com meu marido assistir ao jogo Brasil contra Alemanha, no Mineirão. O dia era 8 de julho de 2014. Cheguei animada para a partida da Copa do Mundo de futebol; a Seleção entrou invicta na Semifinal. Se era esperada uma partida dura, ninguém imaginava o que viria pela frente. Estávamos sentados perto do gol do Brasil e,quando a esquadra europeia fez quatro gols, entre os 23 e os 29 minutos do primeiro tempo, houve um momento em que, atônita, perguntei ao Luiz se havia ocorrido mais um gol. A resposta veio curta e certeira: “Lili, não existe replay em jogo ao vivo”. Foi um verdadeiro desprazer, um pesadelo que nem o golzinho brasileiro no final do segundo tempo teve o dom de amainar.
UM INSUCESSO: Sempre gostei de dançar (um pouco de tudo), porém, por mais que tente, e me concentre até, não consigo sambar, de jeito nenhum: as pernas enrolam, o corpo não requebra, ao contrário, mostra uma total desarmonia. Certa vez, desfilei pela Mangueira, junto com amigos. Decorei o samba enredo, vesti a fantasia conforme o indicado, e até arrisquei algo que nem de longe se pareceu com um requebro. Aposentei o sapatinho.
UM IMPULSO: Sou louca por armação de óculos nova — em viagens, prometo que não, mas sempre adquiro mais uma. A alegria dura, porém, pouco, até porque quase nunca troco de armação e insisto na mesma. Faz anos. Mas meu maior impulso (pra valer) tem a ver com bala de goma; nesse caso, tenho compulsão mesmo, tanto que evito ter um pacote de jujuba a meu alcance, pois sou capaz de esvaziar o conteúdo com grande rapidez, questão de minutos. Em compensação, me considero uma especialista em balas de goma. Sei selecionar as melhores lojas (no Brasil e no exterior), reconheço logo as mais azedas (que são as melhores), as que têm a consistência mais firme: as minhas prediletas. E não aceito qualquer uma, não. Tenho um gosto bem definido e me considero uma grande especialista. E assim como todo especialista, não escondo a compulsão.
UMA PARANOIA: Certa vez, meu calendário no iPhone foi deletado por um técnico que estava tentando me ajudar com um problema que apareceu no aparelho. De um minuto para outro, não sabia mais de nada do que iria ocorrer na minha vida, daquele instante em diante. O pior é que costumo marcar viagens, palestras, encontros, defesas de teses com grande antecedência. Resultado: passei todo o ano seguinte apavorada com a perspectiva de ter esquecido algo. De fato, esqueci uma defesa na USP e passei o vexame de, quando me ligaram avisando, dizer que poderia até ir ao local, para cumprimentar o candidato e a família reunida. Mas que não havia lido o trabalho e não teria nada a dizer. Desde então, desenvolvi a paranoia de “ter esquecido algo”. Sinto os mesmos calafrios que senti naquela ocasião, suo frio e, por isso, me certifico muitas vezes de um mesmo compromisso. Nada disso me impede de acordar à noite com a paranoia de ter esquecido de algo.