Quais os limites da vigilância constante com o monitoramento por reconhecimento facial? Com esse questionamento, comecei as pesquisas e entrevistas que foram a base do roteiro de “Sorria, você está sendo vigiado”, com a cineasta Maria Rita Nepomuceno, para refletir e provocar sobre as consequências da tecnologia usada nas cidades, realidade já praticada em todo o mundo.
Antes de iniciar a pesquisa e fazer o filme, assim como muitas pessoas, eu havia tido contato com os casos de erros das tecnologias de reconhecimento facial, principalmente em relação às pessoas negras, mas eu acreditava que era uma questão apenas de “corrigir” esses erros. A proposta da investigação foi justamente entender a percepção da sociedade sobre o uso da inteligência artificial na segurança pública, o que me fez conhecer a campanha #TireMeuRostoDaSuaMira, que pretende banir o uso das tecnologias de reconhecimento facial na segurança pública, organizada pela Coalizão de Direitos na Rede, com a participação de 52 organizações da sociedade civil.
A Bahia é o estado que mais tem expandido o uso e, no caso do Rio, desde 2019 diferentes forças policiais e empresas privadas têm trabalhado conjuntamente para espalhar essas tecnologias pelas ruas do estado, sendo Copacabana e o entorno do Maracanã os primeiros a receber tais câmeras. Os políticos acreditam que seja a solução para a criminalidade além de um avanço na segurança, mas nenhuma tecnologia é capaz de revolucionar sozinha o trabalho dos agentes. Segundo o governo do Estado, as câmeras captam rostos e placas de veículos; em seguida, enviam as imagens para o carro-comando e para o Centro Integrado de Comando e Controle da corporação, na qual um software faz a checagem, e a tecnologia confere o banco de mandados de prisão e apreensão, identificndo também se o veículo é roubado. No entanto, temos visto muitos casos de erros no reconhecimento, principalmente em relação a pessoas negras.
O processo de construção do documentário também foi interessante para a própria pesquisa, pois, no primeiro encontro com a diretora Maria Rita, ela lançou uma pergunta, que era a mesma que eu havia feito antes de começar a pesquisar e que muita gente também deve fazer: mas a utilização das tecnologias de reconhecimento facial não é boa para a população?
As entrevistas com ativistas, que também estudam a temática na academia, foram fundamentais para que refizéssemos a pergunta: para quem serve o uso dessas tecnologias?
A campanha e as entrevistas foram fundamentais para entender que, apesar de apresentadas como uma solução e um avanço, as tecnologias não são isentas. Assim, em vez de uma ruptura, elas representam, muitas vezes, uma continuidade na forma como o policiamento é feito na história do país.
A experiência com a produção nos levou a rever nossas opiniões e formular novas questões. Posso complementar dizendo que o uso dos arquivos produzidos pela segurança pública nas cidades, além de respeitarem o que deveria garantir a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e a Lei de Acesso à Informação, que são muito avançadas, não são postas em prática, e isso é um desafio em termos narrativos. O problema não é só o armazenamento do material, mas o acesso aos infinitos arquivos produzidos pela segurança pública. Por exemplo, muitas das imagens do 8 de janeiro, no golpe no Congresso Nacional, foram apagadas. Também não temos imagens dos presídios por dentro e nem acesso a elas. O buraco é mais embaixo e temos condições de sair dele, resistindo enquanto sociedade ao que querem nos vender como natural. Que é muito violento e muito pouco democrático. Levantar a poeira desse debate é fundamental.
Paulo Cruz Terra é pesquisador e historiador, professor da UFF. Foi bolsista CAPES-Alexander von Humboldt Stiftung, na Universität Bonn, na Alemanha, como “pesquisador experiente”. Foi eleito, em 2022, Membro Afiliado da Academia Brasileira de Ciência. O documentário “Sorria, você está sendo vigiado” estreia na terça (18/06), às 18h30, na Cinemateca do MAM, seguido de debate com Paulo, e os entrevistados Pablo Nunes (coordenador adjunto do CESeC, onde lidera o projeto O Panóptico, que monitora a adoção do reconhecimento facial nas polícias brasileiras), e a deputada Dani Monteiro. O doc tem produção do Departamento de História da UFF, RioByte e da The Research Council of Norway, na Noruega.