Milícias. Milicianos no campo psicológico. É um massacre de crianças e mulheres. Talvez alguns pensem que estou exagerando. Confesso que venho adiando esse tema porque um fio de esperança ainda corria, mas a umidade da humanidade está secando cada vez mais. Parece que estamos desertificando.
Os casos não são exceções raras. Conhecemos de perto muitos deles, a maioria através da ONG Vozes de Anjos (combate à violação dos direitos humanos de mulheres, crianças e adolescentes). Uma menina de 13 anos, estuprada frequentemente por um tio que complementa o sustento da família e acaba por engravidar a sobrinha. Outra menina de 10 anos, que ainda não teve sua primeira menstruação, começa a apresentar deformações em seu corpo e tem muitas dores que não sabe nem bem localizar. Era estuprada desde os 6 anos, o que lembra, pelo seu pai. Uma menina de 11 anos, que tinha tido menstruação por duas vezes, também é seguidamente estuprada, dolorosamente, pelo pai, levando a uma gravidez. Assim, poderia encher páginas e páginas com esse tipo de dor que conjuga vários sofrimentos. Não há o devido acolhimento dessas crianças nos serviços de Saúde, que vão sendo desativados; hoje são quatro em todo o país. A tática do cupinzeiro é eficaz: comer por dentro. Não é privilégio desse direito. Enfermeiras e médicos aproveitam a oportunidade de destilar seu sadismo em piadas, em intimidações, em perversões. Um encaminhamento ao “pré-natal” no lugar do serviço de interrupção legal da gestação, uma ultrassonografia se torna instrumento de mais uma violência. Desrespeitando a criança, que já relatou o sofrimento dos estupros, pergunta se a menina não quer ver o bebê, ainda embrião ou feto, dando detalhes mesmo depois que ela diz “não”. O não de uma mulher, ainda mais quando é uma menina, raramente é respeitado.
São dores profundas que repercutem no corpinho ainda pequeno dessas meninas. Não entendem, muitas ainda não tiveram essa aula de Ciências Biológicas nem têm desenvolvimento cognitivo que leve à compreensão da complexidade que foram forçadas a inscrever em suas vidas. E, sendo uma gravidez de risco pela precariedade de seu corpo para levar um processo tão grandioso, do ponto de vista fisiológico, a possibilidade de morte nesse trajeto, e no parto, é enorme.
Quantas meninas vi e pensei: será que essa vai conseguir reorganizar a vida dela? Quantas vezes choro. Não temos os registros de morte dessas meninas. Quantas foram? Quantas são? Há uma intencionalidade de desconhecer esses dados estatísticos. No máximo, você depara com a escorregadia afirmação: é segredo de justiça. Justiça para quem? As dores delas são minhas também. É da ordem do insuportável o mergulho na impotência que acontece cotidianamente. Assistir de novo à crueldade de uma cadeia de estupros, os do estuprador, seguidos dos institucionais, a que cada uma dessas meninas será submetida, vem matando a confiança no humano.
O PL do estuprador veio em sequência. A lei de alienação parental, a emboscada, foi se sofisticando. Apareceu camuflada na proposta de Reforma do Código Civil e, como um lagartinho na folhagem, trouxe poderes de punição de crianças e mulheres bem maiores, falando de penas com aprisionamento para o que esses milicianos psicológicos chamam de “denunciação caluniosa”. O curioso é que, desde o primeiro momento de uma denúncia de violência doméstica e/ou violência sexual contra vulneráveis, a denunciante é chamada de louca, de mentirosa, de histérica, de interesseira, adjetivos que indicam, claramente, a desqualificação de sua voz. A criança, praticamente uma imbecil, repete o que a mãe vingativa mandou que ela falasse, como um papagaio. Suas lembranças, relatadas com detalhes, são desprezadas porque são lacradas como falsas memórias. Esse “fenômeno”, as tais falsas memórias nunca foram comprovadas cientificamente. Mas isso não tem importância nesse campo em que a semântica é distorcida e, perversamente, invertida. Usam-se os mesmos termos para iludir o ouvinte, manipulando seu verdadeiro significado.
Ciência? Para que serve? Importa-se qualquer coisa como se sério fosse. Por exemplo, para fazer frente às tais falsas memórias, aliás, lembranças faladas em palavras com pormenores, desenhadas com detalhes e emoções no papel, encenadas nas brincadeiras que repetem práticas sexuais experimentadas, inventou-se uma categoria de pseudopsicólogos/as que são chamados de “Re-programadoras” — como se fosse possível apagar o registro mnêmico traumático da invasão do corpo vivida.
Agora, os milicianos psicológicos inventaram um PL do estuprador. Para coroar, a vítima de estupro será apenada com uma dosimetria de limites em dobro aos do criminoso, se ela optar por legalmente interromper a gravidez consequente. É estuprada e vai para a cadeia. Lembrando que mais de 60% dos estupros têm como vítima meninas de menos de 14 anos.
Só para refrescar a memória: as três possibilidades do aborto legal são a anencefalia, o risco de morte da mãe e a gravidez advinda de estupro. Pela faixa etária, as crianças que engravidam por estupro têm a gestação e o parto como de alto risco. Há um alto índice de morte durante a gestação e durante o parto. Parece ser bem lógico. Essas crianças, muitas vezes, não tiveram ainda a menarca e entram em processo de gravidez. A curva hormonal que tinha o sentido do desenvolvimento do corpo, sofre uma mudança brusca e radical na geração de um outro ser, toda a duplicação hormonal para o desenvolvimento não do seu corpo, mas de um feto. O incremento dos hormônios da lactação é acelerado quando ainda nem possui mamas ou, se possui em início, ainda precisam desenvolver as glândulas mamárias para, atropelando etapas, já passar a produzir leite. Como? Dói muito ter esse conhecimento e viver a impotência diante de milicianos psicológicos sem escrúpulos.
Esse é apenas um dos detalhes, são muitos. O útero, ainda infantil de tamanho, tem que abrigar um feto que vai crescer acima de sua capacidade de contenção e elasticidade. Alguém olha por essa criança? É muito difícil considerar isso?
Uma curiosidade minha: se o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) ainda está valendo, como encarceraremos meninas de 14, 15, 16 anos? E por 20 anos. É inconstitucional? Não é? Ou o ECA foi rasgado e jogado naquela famosa fogueira? Já acenderam e não avisaram. Estamos sempre atrasados. A maldade, a crueldade, caminham em velocidade pós digital.
Os meninos não engravidam, mas são, igualmente, estuprados dentro de suas famílias. A subnotificação dos estupros intrafamiliares é enorme. Como é difícil e doído ouvir um menino de 6 anos, que era estuprado pelo pai com requintes de crueldade, conjugar o verbo sofrer! Mais difícil ainda é responder à sua pergunta: “Ana, todo mundo que vem aqui no seu consultório tá sofrendo como eu?”. Avaliações de milicianas desqualificam seu relato consistente e coerente. E ele vai seguir sofrendo como as meninas grávidas de estupros incestuosos. As meninas púberes concretizam os estupros continuados com a gravidez descabida em corpo de dimensões ainda infantis, o que as coloca em risco de morte, pelas complicações advindas dessa aberração. É fisiológico. Óbvio. Precisa desenhar?
O estupro é a forma de violência mais humilhante e aniquiladora. Pela sua nocividade, essa forma de violência é considerada um grave Impacto de Extremo Estresse, que causa várias doenças, psíquicas, neurológicas e sociais. A humanidade, ao longo de sua história, usa o artifício da legalização para normatizar suas perversões. O Holocausto, que exterminou mais de 6 milhões de pessoas vistas como inferiores, era legalizado e compactuado por todos — é a legalização do massacre, da barbárie. Milícias são exímias executoras de distorções de leis e, de praxe, prometem proteção. Sempre exploram a ideia de proteção: uma mentira, mais uma… É de lei.
Ana Maria Iencarelli é psicanalista, pós-graduada pela Sorbonne e presidente da ONG Vozes de Anjos. É autora do livro “Abuso Sexual, uma tatuagem na alma de meninos e meninas”, em sua 2ª edição.