Na descrição do seu perfil nas redes, Rosiska Darcy se define “escritora, feminista e mortal” — esta última característica contrariando o título de imortal da Academia Brasileira de Letras, sexta ocupante da cadeira 10, desde 2013. Quando entra em cena com seus discursos (como aconteceu recentemente na posso de Lilia Schwartz), que dão sempre o que pensar, por mais que fale de temas conhecidos, mostra sua química com as letras e o que sai desse relacionamento.
A também advogada, jornalista e educadora, que trabalhou por 15 anos com Paulo Freire (1921-1997), fez 80 em março, com várias comemorações em sua segunda casa, a ABL; a primeira é a casa onde nasceu, na Gávea Pequena, cercada por Mata Atlântica. Sempre conectada no mundo e nas tecnologias, é ela quem edita a “Revista Brasileira”, publicação da Academia, com nova edição este mês, com o tema “A Força da Palavra”.
Segundo a editora, uma vida dedicada à defesa da liberdade e da democracia, “aquela palavra que irrita todos os autoritários e resiste à censura e à fogueira dos que queimam livros, já que não podem queimar os autores. Os artistas e os escritores são as principais vítimas dos censores. Ditadores inventam uma ficção, contam a história à sua imagem e semelhança e chamam de verdade, enquanto os escritores contam a verdade e chamam de ficção”.
Rosika, formada em Direito pela PUC-Rio, começou a carreira nos anos 1960 como jornalista em veículos como “Revista Senhor”, “Jornal do Brasil” e “O Globo”. Foi exilada pela ditadura e morou 15 anos na Suíça, onde conheceu Paulo Freire e Jean Piaget. Ela costuma dizer: “Piaget me introduziu ao pensamento científico e à cultura global. Foi a pessoa mais brilhante que conheci na vida”. Nos anos 1970, participou ativamente do movimento feminista, com livros publicados em francês sobre a valorização da cultura feminina. De volta ao Brasil, trabalhou como assessora especial do vice-governador Darcy Ribeiro e fundou a Coalizão de Mulheres Brasileiras. Em 1995, foi nomeada presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Já viajou pelos cinco continentes, para passeio e para palestras, para passeatas defendendo as mulheres. “Sou feminista da vida inteira, do que me orgulho. Escritora sempre fui, desde menina. Escrevi os primeiros livros em francês, no exílio e, quando voltei, publiquei ‘Elogio da diferença’. Até hoje, já escrevi 13 livros; adoro escrever. Ser escritora é a melhor das profissões”.
Seu último livro, “Liberdade” (Rocco), foi lançado em 2021, sobre temas atuais, como a relação entre o obscurantismo e a liberdade, sobre o ódio, a intolerância e o autoritarismo — sempre em sintonia com o hoje e colocando os pensamentos para circular, embora tenha alguns que ainda não foram a público. “Escrevi um ensaio chamado ‘Corpo paciente, corpo impaciente’, um desabafo que nunca publiquei”.
Leia sua entrevista:
UMA LOUCURA: Atravessar a selva africana, dirigindo uma Land Rover, vadeando rios, atolando nos lamaçais, espantando os bichos, macacos, cobras, com uma criança de 1 ano que foi jogada dentro do carro e que viajava sozinha, ou supostamente comigo, para ser entregue à mãe, em Senegal, entre o nada e o coisa nenhuma, no interior da Guiné Bissau. A menininha, de pavor, não dava um pio, só olhava para mim, e nos entendíamos. A jornalista alemã que me acompanhava, entre lágrimas e um iminente desmaio. A contragosto, dei-lhe um Valium (calmante) da minha reserva paras as viagens de avião. E adorei tudo isso.
UMA ROUBADA: Gastar uma fortuna em euros, para assistir à La Traviata (que adoro) em Paris, e sair no fim do primeiro ato. A cena do baile era no cemitério, todos de luto, e algum gênio deve ter achado que essa inovação interpretativa ia arrasar. A julgar por mim, preferi caminhar na noite tépida da Place de Vosges e, cantarolando minhas árias preferidas, tomar uma taça de bom vinho para esquecer a roubada.
UMA IDEIA FIXA: Escrever uma determinada história que me persegue há 40 anos. Tenho a sensação de que, se fosse escrita, deixaria de ter acontecido e se tornaria ficção. E entre a vida real e a ficção, sempre escolhi a vida real. Talvez um dia, em um livro de memórias… Mas isso é uma outra história: espero que não me falhe a memória. A literatura, às vezes, machuca o autor. Dói.
UM PORRE: Adoro vinho, um gosto caro que não estimula um porre. Não está nos meus hábitos, mas um porre de vinho, num fim de noite fria, é um paraíso. O paraíso é raro, e caro.
UMA FRUSTRAÇÃO: Não ter sido surfista, nunca ter” deslizado sobre as cristas das ondas do mar dessa loucura”. Se nascesse de novo, iria correndo comprar uma prancha e ligar pra filha do Gabeira (Maya, surfista de ondas grandes).
UM APAGÃO: Exílio. Nevou a noite toda no domingo de carnaval. E eu pensando nas escolas evoluindo na Avenida, e me lembrando dos pássaros de asas enormes, bêbados, que vi dormindo pelas calçadas, exaustos, depois de um voo cego sobre a escola — cenas assim, o esplendor do carnaval; lá, uma noite gélida e silenciosa. Mas não me queixo, fui muito feliz na Suíça, onde não torturavam ninguém, e eu podia pensar e escrever o que quisesse. Um país lindíssimo no centro da Europa. Só que, às vezes, sentia cheiro de maresia no lago Lemam — deve ter sido alucinação. Volto lá sempre que posso (deixei grandes amigos) e sempre tenho a sensação de quem chega na sua casa de campo, mas não deixa de ser um pouco minha casa.
UMA SÍNDROME: A síndrome de quem viveu 15 anos na Suiça: uma chocólatra que nunca chega atrasada, dá bom-dia quando entra no elevador, não fura fila e fala baixo nos restaurantes. Fora isso, sou uma carioca conformada com o caos nosso de cada dia. E não me irrito com quem se atrasa… Espero o abraço quente, bom, que os cariocas sabem dar, enquanto explicam que estão muito chateados porque caíram num engarrafamento.
UM MEDO: Não tenho medo da morte, tenho medo é de morrer (Gilberto Gil). Morrer vivendo, a minha própria morte e outras que me seriam fatais.
UM DEFEITO: Tomar conta do mundo. Ele não me obedece.
UM DESPRAZER: Cenas do Parlamento, ladravazes imprecando contra a corrupção, os ternos brilhantes cobrindo as barrigas de cervejeiros, um sujeito inominável que já foi presidente, em nome da liberdade, dedicando o voto a um torturador. Ou morder um pedaço de cebola. Situações que me dão náuseas, nessa ordem. Absoluto desprazer, quase nojo.
UM INSUCESSO: Insucesso é a tentativa recente de me tornar atleta, quebrar o sedentarismo confortável em que passei a vida instalada, para andar numa esteira sem sair do lugar até quase infartar… chegando a lugar algum. Deve ser bom para a minha saúde, opinião unânime entre os médicos. Comecei a ter dores que não tinha, um cansaço que eu não sentia e um humor de cão bravio. Mas, na certa, com dores, cansaço e mau humor, devo estar muito mais saudável… O insucesso é não perceber essa evidência.
UM IMPULSO: Jogar pela janela a caixinha de remédios vários, um para cada mazela, me impondo uma disciplina que não rima com os meus desejos. A vingança do escritor é a possibilidade de sublimação pela escrita. Escrevi um ensaio chamado “Corpo paciente, corpo impaciente”. Um desabafo que nunca publiquei.
UMA PARANOIA: Perder a alegria de escrever. A fé, no sentido religioso e político, já se foi, a golpes de sucessivos milagres esperados e desmentidos. Resta esse milagre cotidiano, que é a alegria da Criação, em que eu ainda acredito e a que sirvo com alegria. É ela e esse outro mistério, que é o amor, que dão sentido à minha vida.