Em seu clássico “Noites Tropicais”, Nelson Motta compartilha emblemática lembrança sobre o ano de 1975: “Ninguém aguentava mais tanta paranoia e violência, tantos filmes e livros e músicas que não se podiam conhecer, tanto coisa que não se podia fazer nem dizer, que se tinha medo até de pensar”.
Caso cogite desistir da leitura, por imaginar que vou enveredar por tom que não lhe agrada, peço que insista por pelo menos mais um parágrafo ou dois, pois esta breve reflexão não contemplará abordagens à direita ou à esquerda. Caso desista depois, que seja por desinteresse no tema ou pela escassez de qualidade da prosa, mas não por antevisão conceitual partidária.
Nasci em 1977. Sinto falta de escrever e postar no correio cartas para amigos que estavam em intercâmbio fora do país e bilhetes para meninas a quem namorava ou gostaria de namorar e, em seguida, aguardar pela resposta, sem saber nem quando, nem se viria. Essa forma de comunicação, com sua dinâmica de tempo, se perdeu, o que possibilitou, como sempre ocorre com toda perda, melhor compreensão do significado e valor daquilo que deixou de existir. A profunda mudança permitiu a quem a experimentou medir os seus impactos na criação do “admirável mundo novo” que daí surgiu.
Para a minha geração e as gerações seguintes, o mesmo não ocorreu com a circulação de pensamentos e ideias. Aqui não houve antes e depois — nascemos e fomos criados acostumados com a falta de restrições à crítica. Nunca sentei em um bar repleto de mesas, comecei a falar mal em alto e bom som de uma figura pública e fiquei preocupado se alguém da mesa ao lado poderia estar ouvindo para bater para um aparato de arapongagem ou censura. A única barreira respeitada era a da educação e boas maneiras (para quem as tinha). Medo de falar, por conta de retaliação ou perseguição, não integrava nosso cardápio de preocupações.
Quando algo está à disposição de graça, de forma perene, acabamos não dando o valor devido, se é que nos lembramos da sua existência. É como se as coisas simplesmente fossem assim, sempre tivessem estado lá e pronto.
Há algo de muito bom nisso, sinal de que a liberdade de expressão está efetivamente concretizada, com estabilidade, em larga escala. No entanto, não podemos esquecer que se trata de conquista dos Estados Democráticos de Direito, representando pilar civilizatório essencial que dá o tom e ritmo no cotidiano das pessoas. Uma coisa é sair de casa dia após dia, sabendo que tem de se preocupar sempre com o que pode ou não dizer e para quem e quando; outra coisa é essa preocupação nem sequer cruzar a sua mente. A diferença entre as duas realidades é brutal.
Nunca me saiu da cabeça a imagem daquelas jovens da banda Pussy Riot, em 2012, presas em uma sala de audiências de um tribunal russo, numa espécie de jaula feita de vidros transparentes, sob julgamento porque cantaram uma “oração punk” em uma catedral de Moscou, rogando à Virgem Maria que livrasse a nação de Vladimir Putin. O ato das jovens ocorreu logo depois que o bispo líder dos cristãos ortodoxos pediu voto para Putin às vésperas das eleições. Elas cumpriram dois anos de cadeia.
Musicalmente falando, a canção, de fato, era péssima. Até confesso que às vezes sinto desejo de enjaular um ou outro protagonista de atentados à boa música, mas logo desisto e me curvo ao direito à livre circulação de ideias, mesmo que sejam grandes porcarias, segundo o meu gosto arbitrário.
Na China, não são poucos os episódios de uso da força pelo Estado contra escritores cujas penas e tinteiros desagradam aos detentores do poder. Em 2009, o escritor Liu Xiaobo foi condenado a 11 anos de prisão, pela prática do crime de “subversão”, por ter sido um dos autores de um texto que defendia a democracia na China. Em 1989, quando era professor universitário, participou dos protestos na Praça da Paz Celestial, o que lhe rendeu duas condenações e seu envio para um campo de “reeducação pelo trabalho”. Sua mulher também foi detida na própria casa, em 2010, sem acusação formal alguma, sem direito a visitas e acesso à Internet. Enquanto cumpria sua pena, Xiaobo ganhou o Prêmio Nobel da Paz e foi libertado em 2017, depois do diagnóstico de um câncer, que viria a matá-lo pouco tempo mais tarde.
Tente imaginar como é a frequência mental das pessoas que vivem em sociedades em que “se tem medo até de pensar”, como disse Nelson Motta sobre o regime militar de exceção no Brasil, igualmente pródigo em múltiplos abusos contra dissidentes de pensamento, sem nada dever aos piores exemplos conhecidos e catalogados. Como ex-adolescente dos anos 90, tenho dificuldade em executar esse exercício de imaginação, mas, com facilidade, concluo que não quero isso para os meus filhos.
Embora repugnantes, atentados sistemáticos contra a liberdade de expressão mantêm viva a lembrança acerca do poder das ideias, como força motriz de mudanças que, ao longo dos séculos, propiciaram notáveis avanços civilizatórios nos mais variados planos. Acho interessantíssimo que, até hoje, governantes munidos de fuzis, drones, tanques, aviões, navios e bombas atômicas tenham medo de alguém que os enfrenta apenas com seu poder criativo, na forma de textos, músicas ou qualquer outro meio de manifestação do pensamento.
Em seu ato ridículo e covarde, ao usar medidas de força contra adversários de pensamento, o autor do abuso “fica nu”, expondo sua fragilidade, numa só tacada, comprovando seu erro e contribuindo para a reafirmação da importância da livre circulação de ideias. Por essa perspectiva, por mais paradoxal que possa parecer, ele presta um serviço à causa que ataca, fortalecendo-a e pavimentando o caminho para a sua derrocada futura.
Ao migrar do plano “analógico” para as plataformas digitais de comunicação, com sua amplificação de vozes e audiências, em que a cadência deu lugar à instantaneidade, a liberdade de expressão ganhou nova dimensão e contornos, criando desafios e reflexões importantes sobre os seus limites, que estão em pleno pulsar no Planeta enquanto digito estas linhas.
Ficou mais difícil conviver com ideias que consideramos ruins porque elas passaram a aparecer com muito mais frequência e intensidade, inevitavelmente chegando até você. Antes, quando não chegavam, ou chegavam “fraquinhas”, não incomodavam tanto.
A liberdade de expressão, contudo, abrange não apenas ideias boas, mas também as ruins. O direito de falar bobagens e até burrices para o público deve coexistir com o direito dos oradores dos discursos luminosos e merecedores de aplausos nos melhores padrões de Cícero.
O problema surge quando as bobagens são ditas com viés de ódio, de forma estruturada, turbinadas por mentiras e até robôs programados para angariar simpatizantes e instigar sentimentos nas pessoas. Essa perigosíssima combinação nada tem a ver com a liberdade de expressão, representando, bem ao contrário, abuso da sua utilização para reduzir a sua densidade por via oblíqua. Não existe o direito de ofender e mentir em público para atacar pessoas ou grupos de pessoas, a fim de fazer valer determinada pauta movida por ideologia, dinheiro ou qualquer outro combustível oculto espúrio, ao largo do direito à crítica e de informar.
Mas o perigo dessa combinação deletéria gera outro risco do mesmo porte ou ainda maior, que é a tentação autoritária de expansão do cerceamento à liberdade de expressão, utilizando justamente os próprios ataques à liberdade de expressão como pretexto para a sua implementação.
Como achar um ponto de equilíbrio nessa delicada equação?
A volta do debate, com a vitalidade dos dias de hoje, nos faz lembrar aquilo que temos e aquilo que podemos perder. Não podemos nos esquecer de que, se alcançamos conquistas civilizatórias admiráveis, isso se deve a uma tábua de princípios fundamentais elementares que a sociedade decidiu abraçar, e da qual nunca devemos nos afastar, aconteça o que acontecer e pouco importando quem esteja no poder em determinado momento. A liberdade de expressão integra esse distinto rol e deve ser tratada como algo tão essencial para a vida como o ato de respirar ar puro ou de beber água limpa. Você até sobrevive com ar poluído e água suja, mas não é nada agradável.
Ricardo Pieri é advogado criminalista e “detesta o uso de porretes para matar ideias e de mentiras para forjá-las.”