Embora a dramaturga e escritora baiano-carioca Manuela Dias afirme que tem um “perfil executivo; gosto da realização”, existe a sonhadora. E com sonhos realizados. Pode-se dizer que o nome de Manuela ficou mais forte ainda, depois de “Amor de Mãe” (2019), colocando Dona Lurdes (Regina Casé) no coração de todo mundo, sua primeira novela autoral, que foi logo para o horário nobre da TV Globo (e atravessou uma pandemia, sendo dividida em duas partes), tendo como protagonista uma babá e mãe de cinco filhos que virou estrela de comercial de banco, tema de livro e filme (que entra no catálogo da Globoplay nesta segunda, 13/05), numa identificação imediata do público.
Depois da novela, cinema, séries, minisséries, programas de TV, agora chegou a vez da Editora Voante, nesse sábado (11/05), das 10h às 21h30, na Urca (Rua Ramon Franco, 67), lançar três títulos ao mercado — uma paixão de Manuela, e não é fugaz; nem todas são, oxente!
Na descrição da editora: “Somos uma gota no intenso oceano do mundo editorial, que é feliz em ser miniatura, e assim poder vagar livremente pelos mares. Cada título é selecionado e tratado como uma peça única, garantindo que cada leitor encontre algo verdadeiramente especial”.
De cara, os livros são “Aniversário da Porquinha Bailarina”, obra experimental dela mesma, escrito na pandemia; “Cartas da Vovó Menina”, livro de cartas trocadas entre a fotógrafa Arlete Soares e Manuela Dias nos primeiros seis anos da vida de Helena, sua filha, com troca de dicas e experiências sobre a vida; e “Trovoada”, estreia da escritora Priscila de Jesus, conhecida como a “Oprah da Baixada” (ela é de Duque de Caxias), sobre um momento de “tempestade em sua vida particular”, selecionada pela “Bolsa Voante”, que ajuda autores a publicarem seus primeiros livros.
Manuela escreve tramas diversas há 30 anos. No seu portfólio, estão “Justiça 1 e 2”, além de filmes, como “Pixinguinha, um homem carinhoso”, a minissérie “Ligações perigosas” (TV Globo) e também de “Zorra total” a especial de Natal da Xuxa. “O intercâmbio de ficção e realidade é tão fluido e contínuo que, quanto mais de perto olhamos, mais nos perguntamos onde está o limite entre esses dois polos da nossa experiência”, diz ela.
É Manuela quem vai adaptar “Vale tudo”, de Gilberto Braga, considerada uma das maiores obras da TV brasileira de todos os tempos, para 2025, sem jamais deixar pra trás seu compromisso com a criatividade, por óbvio.
Leia sua entrevista:
1 – Por que decidiu criar a editora e quais os requisitos de publicação e escolha de autores? Em que nível de empolgação você está no momento?
— Estou muito entusiasmada com o lançamento da Voante. Muito do que eu sou e quase tudo que conquistei na vida devo ao fato de ler ou de escrever. A interação com as letras me fez ser quem eu sou, e abrir uma editora tem a ver com isso. Abrir uma editora cria possibilidades que me interessam como autora, como cidadã, como mulher, mãe, como ativista do meio ambiente – tudo porque eu acredito no poder transformador do ato de ler e escrever. Os livros são minha base, meu aconchego, meus amigos, conselheiros, meu porto seguro, meu diálogo garantido. Ler e escrever me fazem diariamente ser quem eu sou. O nome Voante nasce de uma expressão usada por Homero, na Ilíada, belamente traduzida por Haroldo de Campos como “palavras apetrechadas de asas”, palavras voantes.
2 – Nos últimos anos, segundo um recente estudo, o Brasil perdeu leitores e, entre 2006 e 2022, o faturamento das editoras brasileiras encolheu 40%, baseado na pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro. Qual seu maior sonho à frente da Voante?
— Claro que queremos produzir livros em que acreditamos. Como a Voante ainda é muito jovem, praticamente uma recém-nascida, os objetivos de base ainda estão encontrando suas traduções práticas. Mas o maior propósito é propor maneiras de interagir com a sociedade através das letras, de forma intencionalmente transformadora , seja através da Bolsa Voante, seja através da campanha Ler faz bem.
3 – Como alcançar um público que compre livros?
— Para além da minha experiência pessoal, existem muitas pesquisas científicas comprovando que ler faz bem. Em uma sociedade que nos faz tão mal, é importante identificar o que nos faz bem: meditar, praticar exercícios, estar em contato com a natureza… São atividades que interagem com nossa estrutura hormonal e psíquica. Acontece que ler também faz bem! Não é uma questão apenas de adquirir conteúdo. Ler por 6 minutos seguidos baixa em 68% os níveis de cortisol. Olha que loucura! Isso é mais rápido do que um ansiolítico! Ler previne e retarda todas as doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson, demência etc. Ler aumenta a empatia e também a oxigenação do cérebro. A vida online está sucateando nossa capacidade de concentração; também para isso ler é o remédio. E, nesse sentido, não me importa exatamente quantos livros vamos vender, mas, sim, quantas vidas podemos afetar para que elas leiam? Podemos contribuir mostrando estratégias para sair do sedentarismo literário? Podemos indicar filmes, livros… Todas as ferramentas disponíveis para mudar o mundo me interessam.
4 – Você é acostumada a um público de TV e streaming, estreando como atriz, e depois o lado escritora/roteirista, para todo tipo de gênero, de comédia a especial de Natal etc. Como você acertou o tom de formatos tão diferentes?
— Primeiro, obrigada por achar que acertei. Eu não tenho fórmula para nada, não sei “como dá certo”. O que eu tenho é minha insegurança e sobretudo minha ansiedade criativa e comunicativa. Quero me comunicar, mas sempre podemos errar. É muito importante saber sempre que eu não sou a mina, apenas mais um garimpeiro nessa Serra Pelada das histórias.
5 – Você disse, em entrevista, que busca uma conexão de qualidade, que crie vínculos identitários com o Brasil. “Amor de Mãe” é exatamente isso, com uma protagonista a cara do país, uma mãe porreta, admirável, lutadora… E vem aí o Dia das Mães. O que significa Dona Lurdes pra você?
— Dona Lurdes é o resultado de muita convergência; o meu trabalho é um dos vetores. Regina Casé, com seu imenso talento e amor pelo Brasil, é um fator fundamental pro nascimento dessa Lurdes que existe. O trabalho fantástico do Zé Luiz Villamarim, diretor da novela, então, e hoje diretor de Gênero na TVG, é outro fator determinante no conceito e no resultado dessa personagem. A figurinista e criadora Marie Salles, com sua infinita sensibilidade, é uma energia constituinte que fez toda a diferença, e além de todos os outros personagens que, existindo, ajudam a delimitar a Dona Lurdes. Fora da dramaturgia, acho que a questão identitária é a grande força dessa personagem, sua legitimidade. O Brasil é uma mátria, não uma pátria. Somos um país feito por mulheres, uma população que, quando criança, foi cuidada por mulheres, mães e avós que, sozinhas, criam seus filhos, mas que também estão criando uma nação e mereciam ter suporte institucional para isso.
6 – De uma história tão “amor de mãe”, vem “Justiça”, em que a gente não tem um segundo de paz (rsrsrs). Numa produção, você se envolve em todo o processo?
— Eu sou uma roteirista com perfil bem “executivo”: gosto da realização. Participo apenas dos pontos em que acho que posso somar. Tudo parte de uma parceria integral com direção e produção. “Amor de Mãe”, “Justiça 1 e 2”, “Dona Lurdes, o filme”, todos esses trabalhos foram produzidos pela genial e dulcíssima Luciana Monteiro. Ela é fantástica! Com cada um dos diretores (Zé, Cristiano Marques e Gustavo Fernández), eu vivi uma verdadeira história de amor criativo, cada um à sua maneira. Eu preciso participar da escalação e da criação estética do personagem; acho que isso influencia muito na dramaturgia. Quando necessário, faço visita de pesquisa de locação, por exemplo, em Ceilândia (Brasília). À época, “Justiça 2” seria gravado em Barreiras, oeste da Bahia, mas, por questões logísticas, foi transferido para o Distrito Federal, ideia de Gustavo Fernández, aprovada pela autora, que reescreveu algumas cenas. Nunca estou nas gravações porque sinto que não tenho em que agregar. E volto na edição, porque edição e roteiro são correlatos, cada um com sua matéria-prima (seja texto, seja material gravado). E em todos os processos, estou aberta a me transformar através dos encontros que o processo propõe.
7 – Agora estamos na era das adaptações, e vem aí “Vale Tudo”. Não sabemos até que ponto você pode ou não falar sobre o assunto, mas o que acha das últimas que tivemos e, se você fosse adaptar uma novela de sucesso, seria extremamente desafiador? Por quê?
— No momento, estou focada nos lançamentos, contudo, sobre remakes em geral, acho que as histórias precisam ser recontadas, sempre. É uma questão de memória, de ancestralidade. Ainda temos muita dificuldade de reconhecer o valor da teledramaturgia. Nunca nos questionamos sobre se é bom remontar um clássico no teatro, porque se reconhece o valor daquela obra. Na TV, essa valorização ainda nos causa estranhamento. Eu acredito que alguns autores de teledramaturgia deveriam estar na ABL.
8 – Tem algum projeto dos sonhos?
— Tenho sempre muitos sonhos e projetos criativos; descanso de um, escrevendo o outro. Ao fazer novela, uma das coisas que mais cansam é escrever uma única coisa, porque tem uma hora que não tem jeito e afunila. Mas, mesmo no meio de “Amor de Mãe”, em plena pandemia, eu propus e escrevi o “Alas Negras”. Areja! Escrevi uma série sobre Canudos para a Globo; estou muito ansiosa para que seja produzida. Precisamos assumir o compromisso de recontar a História do Brasil. Precisamos entender urgentemente que somos, sim, um país de luta. Entender que já lutamos muito no passado, pode nos dar força para lutar hoje.
9 – Bahia é a “terra da felicidade”? Se sim, por que veio morar no Rio?
— Nem me fale da Bahia! Penso na Bahia todo dia. Sinto uma saudade incrível com cheiro de sal e dendê, um ventinho que bate. Sinto saudades ao mesmo tempo em que a Bahia está sempre comigo. “Eu vim da Bahia, mas, algum dia, volto pra lá.”