Um dos meus medos irracionais na infância era ficar preso dentro de um submarino. Morando no interior de Minas, o risco de isso me acontecer era relativamente pequeno — o que não diminuía em nada o meu pavor. Porque medos irracionais são — como a expressão muito propriamente indica — irracionais mesmo.
Eu tinha, como toda criança, os pavores de praxe: engolir chiclete, engasgar com bala Soft, entupir com caroço de jabuticaba, deixar o chinelo virado e encontrar a mãe morta, esquecer de lavar atrás das orelhas e crescer ali um pé de couve. Esses todo mundo tinha, admitindo ou não. Aterrorizantes mesmo eram os pessoais e intransferíveis, como o de encontrar um diamante amaldiçoado (muito comum nas histórias do Tio Patinhas), comer demais e ficar com o umbigo estufado (como os das minhas primas) ou conviver, sem saber, com um telepata.
A telepatia seria o mais cobiçado dos poderes (se possuído por mim) ou o mais aterrador (se por qualquer um que não eu). Mandrake tinha poderes telepáticos, que me atraíam muito mais que os gestos hipnóticos. Não que estes não me interessassem. Imagine poder paralisar minha mãe, de chinelo em punho e convencê-la de que eu era a mais inocente das criaturas. Se, por outro lado, minha mãe é que tivesse o dom da hipnose (ou, pior, da telepatia) aí eu estaria lascado para todo o sempre.
Mais um pavor: que Nossa Senhora me aparecesse, boiando em cima de um globo terrestre em miniatura, exigindo que eu fizesse revelações ao mundo (achariam que eu era louco) ou que guardasse segredos apocalípticos (aí é que eu ficaria louco de verdade).
Na adolescência, os medos passaram a ser não acordar a tempo para a prova (não tinha mais a mãe por perto, para fazer as vezes de despertador), roubarem minha mala enquanto eu ia ao banheiro na parada do ônibus (pelas contas do meu pai, isso aconteceria em 100% das vezes) e minha inexperiência ficar evidente na hora H (e todas as horas e minutos subsequentes).
Hoje, meu medo irracional é ter que, depois de morto, ser identificado pela arcada dentária. Antevejo o vexame:
— Agora sei por que ele não gostava de sorrir nas fotos. Era faceta, né?
— Bem-feita, mas era.
— Por que só nos de cima?
— Olha os de baixo, como são meio tortos. Como é que ia pôr faceta nisso? Tinha que endireitar primeiro.
— Naquela idade, usar aparelho ia ser muito ridículo, não?
— Um ridículo a mais, um ridículo a menos…
— Do que você está falando?
— Cala-te boca. Agora olha a coloração desses caninos…
— Também, com o tanto de café que tomava…
— E vinho.
— Ele bebia? Nunca soube…
— “Socialmente”, é o que ele dizia. Haja socialização para os pré-molares ficarem pigmentados de roxo desse jeito.
— Pelo menos os molares estão bem conservados.
— Vivendo a base de comida que não grita nem se debate quando é morta, queria o quê?
— Então está confirmado. É ele mesmo.
A próxima fase é a dos medos póstumos.
Imagine chegar lá e existir um lá. Contra todas as evidências, ter que entrar na fila para a reencarnação. E já não haver vagas para reencarnar sem coluna vertebral (para não padecer de novo de hérnia de disco), sem dentes (para nunca mais ter que fazer tratamento de canal ou ter medo do reconhecimento pela arcada), sem religião (para não saber o que é culpa nem ter medo de aparições) e sem mãe que use chinelo (por motivos óbvios). Ou seja, não poder reencarnar como minhoca (que ainda tem o bônus de ser hermafrodita e não precisar impressionar ninguém para não ficar sozinha no sábado à noite).
Saudade do meu terror infantil de ficar preso num submarino, lá no interior de Minas…