O carioca Alex Neoral tinha apenas 3 anos quando a Unesco criou o Dia Internacional da Dança, comemorado em 29 de abril. No entanto, ele se encaixa bem na tradução da data, pois passou por todos os estilos: do contemporâneo ao técnico, do balé clássico ao carnaval na Sapucaí. E hoje se considera um coreógrafo, dos mais ativos e destacados do país.
Quem diz são os números. Aos 44 anos e 30 de carreira — fato raro num país que costuma exportar seus talentos ou não absorver coreógrafos da sua geração —, é um dos poucos a ter uma companhia estável: a Focus Cia. de Dança, fundada há 24 anos, trabalhando com salários fixos, benefícios, e a única a ter patrocínio da Petrobras, em parceria de 10 anos. Foram 25 obras e 16 espetáculos apresentados em mais de 100 cidades brasileiras, além de Colômbia, Bolívia, México, Costa Rica, Canadá, Estados Unidos, Portugal, Itália, França, Alemanha e Panamá.
Neste domingo (28/04), a Focus faz a última apresentação do seu 16º espetáculo, “Carlota — Focus Dança Piazzolla”, uma celebração ao seu passado de bailarino e suas mestras, como Carlota Portella, com quem dançou em 1999 e 2000. Será no Theatro Municipal de Niterói; depois, vai levar o espetáculo “Still Reich”, vencedor do Prêmio Cesgranrio de Dança, para Manaus (PA), de 17 a 19 de maio.
A agenda para 2024 não tem lacunas. Além das apresentações itinerantes, Neoral está a toda na criação do seu novo espetáculo, “Entre a pele e a alma”, com trilha original interpretada por Ney Matogrosso, com estreia prevista para junho, no Theatro Municipal. A cia. faz uma média de 80 apresentações por ano e, desde 2009, Neoral tem vida dupla, ao coreografar comissões de frente para escolas do Grupo Especial – está desde 2019 à frente da Vila Isabel, ao lado de Marcio Jahú.
Antes de descobrir sua relação estável com a dança, ele estreou uma peça de teatro, aos 8 anos, com Tarcísio Meira e Glória Menezes, “Um dia muito especial”, mas ficou apaixonado pela dança ao assistir aos ensaios de amigas no play do seu prédio, em Botafogo. Começou pra valer em 1994, como bolsista do Nós da Dança, em Copacabana, dirigida por Regina Sauer. Fez parte de diversas companhias, como a de Deborah Colker, Grupo Tápias e Cia. Vacilou Dançou. Como coreógrafo, fez trabalhos para o Teatro Bolshoi no Brasil, a Cia. Nós da Dança e a São Paulo Companhia de Dança, além de musicais e peças teatrais. Em 2017, indicado pela coreógrafa Dalal Achcar, ganhou uma bolsa para passar seis meses fazendo aulas e assistindo a espetáculos em Paris.
O nível de produtividade chega a alarmar quem acompanha não apenas as turnês, como também a disciplina para ensaiar seis horas por dia, na sede, um estúdio na Praça Tiradentes.
Você tinha 3 anos quando foi instituído, pela Unesco, o Dia Internacional da Dança. Nessa idade, você tem alguma lembrança com a dança?
Aos 3, eu já era tomado pela arte: dança, teatro, desenho e música. Eu sempre pedia discos de aniversário, de Natal, queria os LPs pra ficar ouvindo música, dançando, porque aquilo me emocionava. A música me fez querer dançar. Aos 8 anos, tive a oportunidade de atuar com Tarcísio Meira e Glória Menezes, uma estreia de prestígio. Hoje me considero coreógrafo e diretor. Dizem que, quando você é bailarino, é pra sempre, mas eu não atuo mais como bailarino, sou um artista. Não quero deixar legado, mas produzir enquanto eu estiver aqui. A palavra dançarino cabe bem, porque sou um fazedor de dança, um artista da dança. Fico muito honrado de ter um Dia Internacional da Dança, pois acredito que essa arte é a primeira da humanidade, até antes da música, quando os primitivos já dançavam com o barulho do mar, com o som da chuva, com o canto dos pássaros. Os músicos que me perdoem
O que impulsionou você a continuar, já que o Brasil não é lá um país muito tradicional na dança. Uma criança ou adolescente podem sofrer muito bullying por dançar…
Foi por acaso que encontrei a dança e vice-versa. A minha vontade era ser artista; depois dessa peça, fiquei com essa ideia de ser ator. Estudei piano, queria ser desenhista, algo ligado à arte. Quando veio o vestibular, pensei em ser professor de inglês, estudar Letras, só que a dança foi uma paixão arrebatadora, e ela vai me levando. Me vejo conquistando espaços e mais possibilidades, melhorando a minha companhia, crescendo a estrutura. Sobre o bullying, realmente o Brasil é um país muito machista. Meu irmão é professor de jiu-jítsu, então, no início, os amigos dele faziam brincadeiras, mas quando me viram no palco, começaram a respeitar e sempre prestigiaram. No fim, a gente não dá muita importância pra isso porque, antes de questionarem a sexualidade, as brincadeiras já aconteciam antes da dança, até pela escolha da arte como profissão, que vem sempre com aquelas perguntas: “Será que eu vou me sustentar sendo artista, será que vou conseguir sobreviver sendo bailarino?” Talvez, se eu escolhesse uma carreira de Advocacia, de Medicina, até mesmo sendo professor de qualquer coisa, isso daria uma falsa “segurança”, mas você não está seguro em nada, sabe? Tem que fazer com amor, com verdade. A gente é uma grande engrenagem, e todas as peças são importantes. E ser a peça da arte, que acho essencial para uma sociedade que salva o mundo, é um privilégio.
Já pensou em desistir? Em que situações e por quê? E o que fez você resistir todas as vezes?
Nunca, porque acho que estou conquistando espaços, crescendo. Isso aconteceu com a carreira de bailarino e, agora, de coreógrafo, diretor. As coisas foram aparecendo e vão se somando, se mantendo, proliferando e se transformando. Nem tive tempo de pensar em desistir porque, felizmente, a dança toma todo o meu tempo e me preenche num ótimo sentido. Infelizmente vi muitas pessoas desistindo: as que começaram comigo, que já admirei, me inspirei e desistem por falta de oportunidade; outras, por questões da vida, até mesmo meninas que decidem ser mães, pois é difícil conciliar porque seu corpo é seu instrumento de trabalho. E nem todo mundo quer ser bailarino para a vida inteira. Quando você se vê artista, é para sempre.
São 30 anos de carreira e você é o único da sua geração a ter uma companhia estável de balé. Como você se vê?
O principal é conseguir motivar muitas pessoas, ter relações duradouras com os bailarinos. Hoje, como coreógrafo, ou até mesmo quando fui bailarino, tive relações duradouras com as minhas diretoras, que é um elemento de prazer, porque sem prazer, a dança é muito dura, muito doída, porque ela lida direto com o seu corpo, seus cansaços, suas preguiças, seus outros desejos. Acima de tudo, sou muito curioso, interessado no que o outro está fazendo, no que está acontecendo ao meu redor, também em outras artes. Quando você perde o interesse, perde a curiosidade, também perde o prazer. Os elementos alegria e felicidade não estão dissociados da disciplina que a dança precisa. Você pode fazer tudo isso com leveza, sem pressão, porque todas as sensações vão para a cena. Se meus bailarinos estão felizes, o público percebe. Já ouvi muitas pessoas falarem que meus bailarinos são felizes… E são mesmo.
Os brasileiros não estão acostumados a assistir à dança contemporânea… Qual a maior dificuldade?
O Brasil é um país extremamente talentoso. Quando os profissionais saem do país, se tornam primeiros bailarinos, solistas, principais. Isso também por ser um lugar de muitos ritmos, está no nosso sangue, desde as danças de Norte a Sul. É comum na Focus a gente ver pessoas indo pela primeira vez ao teatro, e essa é uma das responsabilidades do meu trabalho: fomentar essa arte. Talvez o meu estilo chegue ao público com maior facilidade. A dança contemporânea não é uma técnica fechada como o balé clássico, porque você assiste e reconhece vários movimentos de uma bailarina de ponta, é mais familiar para o público. Na contemporânea, são danças conceituais, talvez com pouquíssimos movimentos, sem música, sem luz, sem roupa, o que pode causar estranhamento. No meu trabalho, levo músicas de conhecimento público, como os tangos de Astor Piazzolla, outro com músicas do Roberto Carlos, de Chico Buarque, mas também música erudita. Acho que essa minha versatilidade pode ser um elemento que aproxime o público. O incentivo/patrocínio acontece quando tem retorno, seja ele erudito ou não. A gente tem vários exemplos de artistas de massa que não são bons, mas atingem muitas pessoas. Então isso passa pelas ferramentas que a pessoa tem para assimilar aquela arte. Acho que estamos conquistando nosso espaço. A dificuldade é quando um espectador assiste à dança contemporânea e não quer mais voltar.
Você sempre foi a favor da democratização da dança? Curte dança de rua, passinho, dança de salão etc? Já notou algum nariz empinado pra você?
Muito. É uma arte plural, com muitos estilos diferentes, muitas possibilidades de se mover, com dificuldades muito específicas. Sou contra acreditar que o balé clássico é a base de tudo: é uma dança riquíssima, com mais de 400 anos, mas é uma técnica muito seletiva porque ela não vai preparar alguém para dançar samba ou passinho. O balé trabalha musicalidade, lateralidade, coordenação, mas é uma técnica mais rígida, e não, a base de tudo. Todas as danças têm sua importância. A que faço é dentro do teatro, é cênica, mas também tenho trabalhos na rua, literalmente no asfalto, na praça; então, também é uma forma de a gente democratizar. São artes que agregam. Já notei o tal do nariz empinado, talvez por fazer um trabalho que comunique a muitas pessoas ou a poucas. Podem só achar que o trabalho é fácil porque chega a um grande público ou é superficial, mas não acredito nisso porque tem o poder da comunicação. Já recebi críticas ruins e muito boas. Acho que isso é o lugar da arte viva, de você se arriscar, de você não querer fazer a mesma coisa. Com uma companhia, posso ir para muitos lugares, criar outro e já pensar no próximo. Isso, a pessoa de nariz empinado vai falar, e eu vou só lamentar, pois estou motivado. Sei que vão existir opiniões diversas, adversas e respeito, mas acredito que hoje o meu trabalho é muito mais respeitado.
Como aconteceram as escolas de samba e o que elas representam pra você?
São 15 anos… E é algo muito específico. Não digo viciante, mas é prazeroso, desgastante e muito trabalhoso. A época de carnaval é, talvez, a mais cansativa, em que durmo menos, porque os ensaios são de madrugada. Tem a pressão da comunidade, da própria escola, mas tem, antes de tudo, a minha exigência de fazer o melhor. E é um trabalho muito injusto, no sentido de que ele é uma competição e te dá nota. Como você avalia a arte? Qual é a nota da Mona Lisa? 9,8? Qual é a de um Van Gogh? Ali é isso: estão buscando os erros e os acertos, e a gente trabalha com algo muito subjetivo, que às vezes é a opinião de um jurado que quer ou não dar nota 10. Muitas vezes, para mim, o trabalho foi perfeito, e o jurado tirou um décimo. E é muito específico porque é uma coreografia que tem que andar, ela desloca e tem que acontecer em 2 minutos na frente dos jurados e fazer o público gritar. Talvez eu seja o único coreógrafo que tenha uma companhia que atue no carnaval carioca.
Dizem que seu nível de produtividade chega a alarmar quem acompanha não apenas as turnês… Existe vida social e/ou amorosa para dançarinos/bailarinos/ coreógrafos?
A gente tem uma produtividade muito expressiva na cia. Eu, pessoalmente, também, porque não é só a Focus: tem o carnaval, dou cursos, sou jurado em festivais, dou aula fora do país, coreografo para outras companhias, mas isso para mim me alimenta muito porque são coisas completamente diferentes. Quando a gente diz que não tem tempo, não é verdade, porque, se a gente quer, a gente cria. É necessário ter vida social, amorosa, comer bem, ir à praia, se divertir e estar com a família. Isso tudo tem ligação com o prazer. Não acredito numa devoção absoluta, uma exclusividade. Eu tive que correr muito atrás, porque comecei tarde, aos 14 anos, e sempre optei em não viajar, para ensaiar, mas deu tempo de fazer tudo também. Não me lembro de não ter me divertido, de não ter tido amigos, mas é uma profissão que exige realmente renúncias, como nos fins de semana, quando levamos a arte para as pessoas. Sou muito feliz com essa agenda frenética.
Como vocês estão comemorando o mês da dança?
A gente vai ter um ano bem cheio, bem turbulento (no bom sentido), com muito movimento. Continuo levando os espetáculos da Focus para várias cidades nesses meses que estão antecedendo a estreia de “Entre a Pele e a Alma”, que estou muito ansioso pela oportunidade de ter o Ney cantando as músicas do espetáculo e as músicas originais, sendo compostas para o trabalho. E os figurinos são de João Pimenta, que é um figurinista que amo de paixão, venero. Então, é um projeto que tem tudo para ficar muito interessante. A minha cabeça está muito nessa criação.
Quais são suas maiores inspirações na dança?
É engraçado que não me inspiro só em dança para fazer dança. Muitas vezes, tenho muitas ideias em museus, vendo telas, vendo esculturas, figurinos, ouvindo música – ela me fala a coreografia. O dançarino tcheco Jiří Kylián, para mim, é o maior de todos, é o papa da dança e me inspira muito, me dá vontade de assistir e ficar feliz que você também faz aquilo. O Ohad Naharin, diretor artístico da Batsheva, também é muito interessante, a coreógrafa Sharon Eyal, o espanhol Goyo Montero…
E os projetos para os próximos anos?
Já estou pensando em um próximo espetáculo, mas acho que ainda não vou adiantar, porque estou na dúvida. Estou decidindo com a minha parceira, diretora de produção Tatiana Garcias. E espero também que a cia. ganhe uma maior projeção internacional, com mais viagens e apresentações fora do país. Têm muitos espetáculos, e vamos remontar alguns trabalhos para dançar, e muito movimento. Adoro. O negócio é continuar.
Algum sonho não realizado?
Costumo dizer que eu realizei os sonhos que eu não sonhei, porque eu nunca sonhei em ter uma companhia de dança, e eu tenho. Não sonhei em ser bailarino e virei. Por exemplo, me vi em Nova York com o espetáculo “As canções que você dançou pra mim” (inspiradas nas músicas de Roberto Carlos), no maior teatro de dança do mundo, o The Joyce. Então, são muitos sonhos que acontecem sem sonhar, mas existem desejos. Acredito que uma vontade era dançar fora do país; não tive essa oportunidade, mas também não corri atrás. Então, hoje, meu sonho é dançar muito com a minha companhia fora do país, viajar muito. Talvez o meu coreógrafo favorito, o Jiří Kylián, tenha assistido ao meu trabalho e me convide para um dueto.