Hoje sou a mulher da coluna torta, mas já fui a menina. Aos 11 anos, em uma consulta de rotina com médico ortopedista, descobri uma grave deformidade na coluna: escoliose. Logo eu, uma pré-adolescente cheia de vida, vaidosa e, como a maioria, descobrindo o próprio corpo.
A notícia, que chegou mais explicadinha por meio dos meus pais, já que não entendi nada do que o médico falou, caiu-me como uma bomba. Agora, eu fazia parte da estatística de 2 a 3% da população mundial que tem essa doença, sendo 80% dos casos em meninas. E pior: se eu não seguisse o tratamento indicado pelo médico, poderia ter graves problemas no futuro, inclusive respiratório, pela força das curvas da coluna em cima do meu pulmão.
Fora a questão estética, afinal, deixando a escoliose evoluir, eu ficaria cada vez mais, tridimensionalmente, torta. E qual era o tratamento da época, ou seja, 30 anos atrás? Usar, por 23 horas diárias, um colete ortopédico, chamado de Milwaukee, que mais parecia um objeto de tortura; só de pensar nele atualmente, fico toda arrepiada. Foi, de fato, um horror na minha vida. Com três ferros que vinham da minha cintura até o meu pescoço e uma placa de acrílico, que achatava a minha barriga e a minha bunda, eu não tinha outra alternativa a não ser encarar esse desafio.
Passei a ter vergonha de tudo. Não queria chamar atenção de jeito nenhum, ainda que eu chamasse o tempo inteiro: na rua e na escola, por conta daquele colete terrível. De menina bonita e alegre, passei a ser a menina triste e encolhida na própria dor emocional. Maquiagem? Nunca. Blusinha justa ou decotada? Jamais. Calça apertada? Nem tinha como. Virei uma extraterrestre. E o complicado não era lidar apenas com a parte estética: movimentos corriqueiros que antes eu fazia naturalmente, como sentar e andar, agora, eram uma dificuldade sem fim. Tchau autoestima!
Como tragédia pouca é bobagem, depois que tirei o colete, já com 15 anos, descobrimos que minha escoliose era progressiva e, mesmo com o crescimento ósseo fechado, ela não pararia de crescer nunca. Resultado: cirurgia na coluna! Mas não é qualquer uma não, e, sim, uma operação complexa, longa, delicada e que envolve a medula. Qualquer erro, adeus movimentos das pernas. Além de tudo, é uma cirurgia extremamente cara e que tem uma fila de anos e anos para conseguir realizar pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Mas foi tempo de aprender. E aprendi. Aprendi muito nos quatro anos em que passei encoletada e mais tantos outros lutando para conseguir operar. Quando finalmente consegui, no auge da minha dor e amparada por muita morfina, resolvi contar a minha história — da cama do hospital mesmo, com uma caneta qualquer e um caderno que minha mãe comprou pra mim, comecei a escrever. Eu precisava ajudar outras pessoas que passavam pelo que eu passei, afinal informação é a chave de tudo nesta vida. Dez anos depois e, já com um filho embaixo do braço, finalmente, lancei meu primeiro livro “A Menina da Coluna Torta”, uma autobiografia focada na minha infância e adolescência com escoliose para ajudar famílias e pacientes com o mesmo problema.
E aí veio o motivo de tudo isso que aconteceu comigo. Recebi muito amor e carinho em forma de ligações, mensagens, e-mails e toda forma possível de comunicação, de mãe, pais, meninas e meninos com escoliose, me agradecendo por ter publicado o livro e ajudá-los com a minha experiência. Para mim, isso valeu de tudo. Pensar que fiz a diferença na vida de uma pessoa sequer — e no caso foram muitas — me trouxe de volta toda a felicidade que o colete um dia me tirou. Sucesso de vendas e de mídia, a minha história se espalhou pelo Brasil e pelo mundo e, por meio do blog que criei com o mesmo nome do livro, eu me comunicava diariamente com os leitores.
O tempo foi passando e, apesar de toda a minha alegria em trabalhar com a conscientização da escoliose, tive que focar na minha carreira de jornalista no mercado corporativo. Trabalhei em assessorias de imprensa, sites, revistas, agências de comunicação e até empreendi, criando uma marca de batons sustentáveis. Porém, nesse meio tempo, eu nunca mais tive a mesma felicidade profissional que tive quando lancei o livro e o blog. Doze anos depois e muitas outras histórias e superações nas costas, larguei tudo. Com 42 anos e pela primeira vez na vida desde os meus 16, quando comecei a trabalhar, tive a possibilidade de sair do mercado de trabalho tradicional e voltar ao que eu tanto amo: escrever e falar sobre a escoliose para outras pessoas.
Mais uma vez, página em branco na frente, e vamos lá escrever a segunda autobiografia, continuação da primeira. Em pouco menos de seis meses, o segundo livro “A Mulher da Coluna Torta” estava pronto e sendo preparado para ser publicado pela Editora Viseu. Recriei o blog, comecei uma nova conta no Instagram e, do zero, me reencontrei trabalhando novamente com a conscientização da escoliose. Me candidatei para ser voluntária no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, o mesmo onde fui operada da escoliose. Hoje, atuo na área de ortopedia, visitando os quartos de pacientes recém-operados, seja da coluna, seja de outras partes do corpo. Levo sempre uma palavra de conforto e carinho para quem precisa, como eu precisei um dia.
Júlia Barroso é carioca, mas cresceu entre o Brasil e a Europa. Com mãe modelo e pai fotógrafo, morou em Atenas, Madri, Londres e São Paulo. Aos 11 anos, descobriu a escoliose, uma severa deformidade na coluna. É formada em Marketing e trabalhou como jornalista durante boa parte da carreira. Atualmente mora em São Paulo e tem se dedicado à conscientização da escoliose através de palestras, livros, do blog e do Instagram (@ameninadacolunatorta). Júlia também é integrante da Sociedade Brasileira de Escoliose (SBE). O livro “A Menina da coluna torta” foi lançado nessa sexta (12/01) e está nos sites da Amazon, Americanas, Magazine Luiza, Shoptime, Submarino e da Editora Viseu.