Não se sabe ao certo quando, como ou por que teve início o flagelo do bar com música ao vivo.
Uma das teorias diz que, percebendo que as pessoas que muito conversam pouco comem, o dono de um desses estabelecimentos teria resolvido criar obstáculos à conversação. Não tendo obtido êxito com mesas individuais em cubículos à prova de som nem com o amordaçamento — por motivos que parecem óbvios — convidou um grupo para fazer barulho e não deixar ninguém falar.
Inicialmente, batiam-se latas e panelas. Mas isso, por danificar as latas e as panelas, acabava saindo muito caro. Resolveu-se, então, contratar músicos – artista sempre sai bem mais em conta.
Ocorreu o inevitável: efeito sonoro em cascata. Os músicos começavam a tocar “Andança” (exemplo meramente ilustrativo) e os clientes, para se fazer ouvir, falavam mais alto. Então atacavam de “Travessia” – e o tom (não só o da música) subia. Como os clientes não se davam por vencidos, vinham as obras completas da Legião Urbana. Nesse ponto, o falatório já tinha virado escarcéu. Hora de “Shimbalaiê”, “Ana Júlia”, “Flor de lis” (se fosse na Praça São Salvador, “Pra não dizer que não falei das flores”). Quando o estrépito atingia 150 decibéis, era hora do golpe de misericórdia: “Evidências”.
Essa tese, segundo especialistas, deve ter acatada com reservas, pois as pessoas não só não pararam de falar como começaram a ter que falar mais e mais alto para serem ouvidas. E quanto mais berravam, menos comiam ou bebiam.
Outra teoria, mais plausível, é a de que não são os bares que têm música ao vivo, mas os músicos ao vivo que têm um bar.
Quem pagaria a entrada (mesmo que com direito a meia) num teatro ou casa de espetáculos para ouvir aquelas pessoas tocarem aquelas músicas daquele jeito? A única maneira de ter plateia era comprando um bar, servindo batata frita murcha e chope aguado e cobrando couvert artístico. O bar seria o meio, não o fim. Uma arapuca, uma isca. Pura estratégia mercadológica.
Uma terceira hipótese, para a qual convergem os cientistas que se dedicam ao tema, é de que ambas as partes — bar com música ao vivo e músicos que tocam ao vivo em bar — sejam uma forma de purgar um karma coletivo.
Tanto os que querem conversar com os amigos enquanto bebem ou petiscam (e não conseguem por causa da música alta) quanto os que desejam tocar sua música (e não conseguem ser ouvidos por causa da gritaria) estariam pagando os pecados de existências anteriores – quando teriam introduzido pica-paus na arca de Noé, desativado o Google Translator na Torre de Babel, roubado o GPS de Moisés no deserto, servido vinho rosê na Santa Ceia.
Mais algumas encarnações, com a dívida atávica quitada, poderemos finalmente nos sentar no bar para beber e conversar fiado – e tocar e cantar para quem realmente queira ouvir.