Agora que Gerald Thomas está no Piauí posso enfim ter também o distanciamento necessário para, impressionisticamente, falar de sua peça, “Traidor”, escrita e dirigida por ele, e que dá sequência à parceria com Marco Nanini, iniciada há mais de década, com “Um circo de rins e fígados”. Thomas está no árido e fascinante Piauí, dando um ‘workshop mucho loco’ enquanto a peça continua em cartaz em São Paulo, no opulento Sesc Vila Mariana até o dia 17 de dezembro.
Por distante que pareça, Gerald está em cada fala, em cada inflexão, em cada expressão do genial Nanini. Não é fácil ser Nanini e expressar Gerald sem perder a substância absoluta que é ser Nanini — ainda mais, com Gerald no Piauí. Ele(s) consegue(m).
São esses os passos em falso que dá o teatro, passos de saltimbanco, cambalhotas pluriespaçotemporais. É assim que nossos corpos e nossas vozes se veem no mundo fragmentado em que vivemos, no qual é difícil formar uma frase sem que outra sentença se imiscua entre as vírgulas, as sílabas, os hifens e os himens de nossa memória.
É esse personagem trágico, no sentido grego mesmo, que vemos, ainda que Nietzsche se imiscua o tempo todo na protogênese da palavra como explicador universal de toda vontade de poder… explicar.
Lembro-me do Lobão falando pra Caetano: “Chega de verdade”. Eu acrescentaria: “Que saudade da saudade…”. É ela que tenta se inserir no discurso de Nanini, sem conseguir espaço, pois estamos cá espremidos nesse hiperatual que corresponde a um vazio total de ideias e de possibilidades.
Assim, Nanini-Gerald titubeia à procura de (re)formar a linguagem depois de termos voltado ao pré-humano, tentando, de novo, dar nomes às árvores e alertar o vizinho de que uma onça vem aí.
“Traidor” é sobre o quanto traímos a espécie na ilusão de sua viabilidade e o quanto perdemos o lugar de fala “primevo”. O quanto deixamos de respeitar o ritmo e os ciclos do Planeta, na vã esperança de controlar a morte, aquela que é certa e sincera como uma carreira de cocaína jaggeriana: ela não mente.
Ela vem. Gerald vai, Nanini fica, mas a arte vai e vem, no mesmo lugar, aqui e agora, como diria Gil, cristalizado no centro orbital do palco.
Hey hey, dee dee, take be back to Piauí! E oremos por São Paulo, que é o túmulo mas também a ressurreição de tudo que samba, como Nanini na impagável cena da linguiça, em que se traveste num Brasil cambaio, irreconhecível, tartamudeante, pós-retro-tétrico-picalista, rumo ao…
Isso tudo vai passar, Gerald. E esse jogo vai virar.
Arnaldo Bloch é jornalista, escritor, tradutor e roteirista. Autor de “Os irmãos Karamabloch”.