O que esperar do futuro quando civis, inclusive crianças palestinas e israelenses, pagam com seu sangue inocente pela barbárie estúpida dos que só enxergam o ódio, ignorando todo o resto? Foi mais uma dentre as tantas cenas impactantes do cenário atual. O menino miúdo chega ao hospital em estado de choque, tremendo de cima a baixo, mirando lugar nenhum, com os olhos arregalados — mais uma criança, coberta pela poeira dos destroços, não consegue elaborar a destruição ao seu redor. O menino está só! Ele treme e arregala os olhos! Todo ele é puro medo! O médico que tenta acalmá-lo se aproxima aos poucos, ganhando a sua confiança e mostrando que ainda lhe resta algum porto seguro. Assim, ao sentir aqueles braços amparando o seu corpo, o garoto desaba a chorar. Esse registro, do fotojornalista Abdulllah Al-Attar, viralizou na Internet, causando grande comoção. Dói ver o mundo transformado em mundo deserto.
Essa expressão, ressaltada pela filósofa judia alemã, Hannah Arendt, em 1955, atentava para o fato de que a maldade humana pode chegar longe, desde o que vimos acontecer no terror do Holocausto. Arendt nos alertava para o quanto somos capazes de espalhar a “ausência-de-mundo” ao destruirmos tudo o que remete à materialidade construída e asseguradora de estabilidade para nós. Basta olhar para Gaza, e o pouco do que ficou de pé, para ver que a tese não é uma metáfora. Pior, e ainda mais grave, é constatar a devastação da coexistência que direciona nosso desígnio comum na Terra. Como acompanhar o que se dá no Oriente Médio sem se desolar?
A alienação do mundo, a que assistimos por todo lado onde há presença humana nesse planeta, confirma o que Hannah havia denunciado em seu “A Condição Humana”, de 1958: estamos desprendidos da Terra e descolados do mundo. Com isso, prevalecem, apenas, nossos desejos narcísicos e nossas premissas ideológicas. Ora, nossa vida só se faz possível em “espaço compartilhado”. Sem o “entre”, portanto, deixamos de ser gente; por isso, vale resgatar a decisiva pergunta feita por Hannah Arendt: “O que estamos fazendo?”
Os movimentos totalitários e o extremismo são os elementos que fortificam o cenário dantesco em que estamos neste século XXI. Não devemos aceitar que o deserto seja a nossa casa. Não podemos nos adaptar às condições de “ausência-de-mundo”, pois não somos seres do deserto! Esse descolamento da realidade — rumo a ficções cada vez mais violentas contra a natureza, contra povos, culturas, credos, gêneros, raças … — permite que pressupostos monstruosamente falsos se tornem fatos incontestes.
Até quando vamos deixar que o “mundo-deserto” se expanda? Até quando vamos continuar ocupados em resolver as mazelas apenas de cada “eu” em sua “interioridade”, e não dos “eus-sem-mundo” que vagueiam desolados pelo deserto? Não nos enganemos: enquanto existirem humanos excluídos, humilhados e massacrados (na Amazônia, na Ucrânia, em Gaza ou em qualquer parte do Globo), estaremos todos, cada vez mais, destituídos de lar. O descuido de tudo o que diz respeito ao “bem comum” leva à produção de “mundo-sem-mundo”.
Resta-nos assumir que a tarefa da coexistência segue, mais do que nunca, na ordem do dia, diante do desterro e da desmundanização do mundo. Para tal tarefa, importa que atuemos como “cultivadores de oásis” em prol de nossa pluralidade e contra a expansão do deserto.
Bianca Damasceno é jornalista com doutorado em Filosofia pela UERJ, mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade (UVA/RJ) e pós-graduação em Psicologia Fenomenológica-hermenêutica (USU/RJ). É autora do livro “Sociedade de Autônomos: Crítica ao individualismo contemporâneo a partir de Byung-Chul Han e Hannah Arendt (Editora Dialética), a ser lançado no dia 9 de dezembro, sábado, às 18h30, no Espaço Tempo Bistrô, em Botafogo.